Morto entre vivos
Não estava nos meus planos sofrer um acidente enquanto atravessava a rua naquele dia. Não estava mesmo.
Meu nome não faz diferença porque eu já estou morto, mas gostaria de deixar aqui o meu relato do que vem depois que eu morri. É, algumas coisas aconteceram... Coisas que... Ah, não vou estragar o final da história, melhor eu começar direito. Num dia ruim eu decidi sair de casa para esfriar a cabeça, uma vez que meu pai decidiu me colocar pra baixo. Cara, eu odiava aquele homem! Desde que minha mãe tinha morrido, ele estava mais duro comigo e minha irmã. Nos fazia ser sempre os melhores alunos da escola, me sufocando muito até nós começarmos uma longa guerra.
Enfim... Lá estava eu, desolado. Saí de casa sem guarda-chuva. Penso se eu ainda estaria vivo se tivesse levado um, mas agora isso não importa mais, não é?
Eu caminhei conforme ia pensando, chutando lixeiras e latas no caminho. Coisa de adolescente nervosinho, eu diria. O tempo então começou a fechar e uma chuva enorme despencou do céu. Raios e trovões ameaçavam meus ouvidos, mas eu não estava nem aí. Ainda estava bolado com a briga. Tentei olhar pros céus, mas os pingos da chuva me encharcaram os olhos. Fiquei pensando o porquê de minha vida estar daquele jeito. Quis gritar para minha mãe, mas duvidei se ela iria ouvir lá de cima.
Bom, mas é aí que está. Nem bem fui atravessar a esquina, um caminhão desgovernado passou por mim. Por sorte, meu corpo ficou inteiro. Sorte! Eu estava morto agora. Sem chance de últimas palavras.
No começo foi estranho, eu achei que seria mandado pro inferno rapidamente. Mas não, eu só apareci ali, do lado do meu corpo, de pé e olhando o dono do caminhão com cara de abismado. Ele claramente não me via - Foi o que constatei ao tentar tocá-lo e minha mão simplesmente o atravessou. Mas ele sentiu um arrepiozinho que eu vi, hein.
Fui pra casa enquanto ninguém sabia que eu estava morto. Parei na porta e quase atravessei a parede, mas não tive coragem de chegar antes da notícia de que eu havia morrido. Então sentei do lado de fora da calçada e decidi esperar. Depois de um tempo, ouvi o telefone tocar lá dentro e minha irmã abriu um berreiro. Aquilo podia cortar meu coração, se eu ainda tivesse um.
Então meu pai e minha irmã saíram correndo para a garagem. Eu os acompanhei e entrei no carro, não muito certo se iria atravessá-lo uma vez que ele desse a partida ou se conseguiria ficar sentado como na calçada. Muito estranhamente, eu não caí do carro. Acho que isso tem a ver com a vontade do "fantasma", o que ele quer pensar que é sólido e tal. Mas... Eu estou divagando demais. Engraçado, eu não fazia muito isso quando estava vivo.
Identificar o meu corpo também não foi fácil. Meu pai foi sozinho e confirmou minha morte. Eu tentei consolar minha irmã, apesar de ela nem sequer ter me visto. E eu não podia tocá-la, nem se quisesse. Ora, ser fantasma não era lá muito vantajoso, eu começava a questionar...
Alguns soluços mais e voltamos para casa, com velório marcado. O que eu fiz até lá? Bem, tentei visitar uns amigos que tinha. Eu não tinha muitos amigos, na verdade... Só parei em frente a casa de alguns e fiquei encarando, sem coragem de invadir. Acho que foi o melhor a fazer. Numa dessas, o telefone tocou lá dentro da casa e eu fiquei com o ouvido atrás. Era minha irmã, avisando um conhecido meu sobre a minha morte.
Agora, tem algo estranho comigo ou com a morte em si: eu não conseguia me sentir triste nem chorar. O caminhão devia ter levado minhas emoções, porque eu só ficava indiferente. Ou isso ou as preocupações de vivos se acabam na morte mesmo. Eu resolvi parar de pensar nisso um instante e fui para casa.
Algumas vezes, atravessei a minha irmã. Eu estava entediado com aquela "vida sem vida" e não sabia o que fazer até que pensei "por que não?". Ela ficava cheia de arrepios quando eu fazia isso, haha. Não tive coragem de chegar perto do meu pai depois daquilo. Talvez eu soubesse que ele estava sofrendo ou ainda tinha ressentimentos com o velho, mas eu só não fui vê-lo como olhava minha irmã. Ao contrário dela, ele sempre pareceu ser tão forte...
Só que teve uma hora que nós "topamos". Ele não percebeu, claro, mas parou de andar um pouco e ficou olhando pro chão. Foi aí que ele disse o nome da minha mãe. Achei ter visto uma lágrima no rosto dele, mas não tinha certeza se ele podia chorar assim.
Podem me chamar de filho desnaturado, mas quando eu era vivo meu pai não era de manteiga não. Por isso eu sempre achei que ele fosse uma pedra sem sentimentos e que só sabia cobrar de seus filhos até eles não aguentarem mais. Agora eu vejo como as coisas realmente eram...
No velório, foi uma experiência interessante ficar diante de si mesmo num caixão. Minha cabeça atravessou e dei uma última olhada em mim: pele super branca, braços e pernas quebradas. É, eu não estava muito bonito. Que bom que deixaram o caixão fechado, aliás. Retirei a cabeça do caixão antes que ficasse com ânsia (e mortos conseguem ter ânsia?) e fui pro lado do meu pai. Ele fazia um discurso bonito sobre mim. Sério, até achei que ele estivesse falando de algum outro filho que tivesse escondido, mas ele nunca teve uma segunda esposa ou namorada.
Não sabia como estava a minha situação. Fiquei com medo de não estar apresentável para o meu próprio funeral, porque aquela imagem minha de dentro do caixão estava me assombrando - Aham, fantasmas podem ser assombrados. Eu me perguntava se minhas unhas estavam limpas, se meu cabelo estava todo bagunçado. Não comento sobre minhas roupas, porque eu estava usando meu jeans preferido. Meu corpo de pós-morte não era invisível pra mim, mas eu mal conseguia ver meus pés, porque eles ficavam desaparecendo e reaparecendo desnecessariamente. Se meu rosto estava pálido como o cadáver, não tinha como consertar nem com uma lavada rápida na água.
Depois de deixar essas manias de moda de lado - Quem diria que até os mortos temem por sua aparência - eu recebi alguns amigos e conhecidos. Todos eles com os rostos inchados de tanto chorar, ou escondendo as lágrimas. Foi perturbador. Mas pior do que isso foi ver minha família triste - Mais triste que nos outros dias. Era como se eu estivesse de castigo, tendo que ver várias e várias vezes a minha irmã e o meu pai chorarem. Aquilo começou a me atingir... Até que eu gritasse em vão para todos os que ali estavam pararem de chorar. Eu entrei em desespero pela primeira vez depois de morto.
Queria dizer que estava bem, que perdoava meu pai, que não estava bravo com mais ninguém. Mas eles não ouviam as minhas palavras. E isso me corroeu. Me fez sentir o quão ingrato eu era e então minhas lágrimas - Aquelas que antes eu procurava sem encontrar - saíram de onde estavam. Era uma sensação mil vezes pior que a minha própria morte. Saber que aqueles ao meu redor estavam tristes e eu não podendo fazer nada para ajudá-los... Aquela foi a gota d'água.
Soltei um novo grito, desta vez de frustração e raiva. Por que eu estava ali? Por quê eu continuava no mundo dos vivos, se não podia estar plenamente com eles? Qual a razão de estar com as pessoas que amo se não podemos nos entender?
Quando eu me distanciava do caixão, consegui sentir uma fonte de calor vindo do céu. Com essa sensação, surgiu um brilho bem acima da minha cabeça de fantasma e alguém apareceu na minha frente: cabelos ondulados, olhos castanhos e meio cansados... Eu conhecia aquela pessoa.
"Mãe", eu soltei.
Minha mãe me deu um longo abraço e me disse que era hora de ir com ela... Ir lá pra cima. Eu perguntei o motivo de estar no mundo dos vivos e porque só agora ela vinha me buscar. Ela calmamente me explicou o motivo - O que de algum modo encantador me fez deixar a raiva e frustração e fiquei leve. Eu ainda estava lá porque tinha que aprender uma última lição.
Ela me disse que, pouco antes de morrer, fez meu pai prometer que me criaria sem ressentimentos. Ele me criou para ser um aluno gênio porque na sua concepção esse era o jeito mais eficaz de alegrar minha mãe. Mas nem minha genialidade pôde entender os sentimentos dele. Dei um abraço apertado na minha mãe e fui dar um último adeus para minha irmã e meu pai. Eles devem ter sentido um calafrio, mas foi o calafrio mais confortável de todos. Seus corações iriam se acalmar.
Olhei nos olhos de minha mãe, ajeitei o cabelo e olhei para cima, naquela fonte de luz.
"Estou pronto agora".
Subimos.