A ESPERA

... o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e ...

Dona Vera estava no meio da oração do seu terço diário quando ouviu o telefone tocando. É sempre uma expectativa quando isso acontece, pois ela sempre espera que suas orações sejam atendidas. Ela se levanta da cadeira que fica junto a uma mesa onde há um oratório com as imagens dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria e vai atender ao telefone.

Morena, Vera é chamada de dona toda vez que entra naquele hospital. E já se vão quase cinco anos, três vezes na semana, fazer hemodiálise. Ela foi ficando doente e debilitada, e aos poucos, foi perdendo bastante de sua vivacidade. Viúva, ela ainda educa um neto, que sua filha deixou por conta dela para ir morar com um homem na Europa. Aposentada, Vera vive de sonhos, e os sonha acordada mesma. Mas possui uma esperança avassaladora, que contagia todos os colegas de cadeira naquela sala. Espera todo esse tempo por um rim, por um doador compatível. E enquanto isso, sonha... e espera...

Todas as noites ela fica ao menos uma hora contemplando de sua janela o cenário da sua cidade. Tem insônia e suas noites são sempre muito longas. Olhando as ruas, ela sempre relembra os tempos de infância e juventude. Ela mora numa casa simples, numa rua inclinada, próxima a um chafariz antigo, onde no passado, as mulheres lavavam roupa e aproveitavam o dia a conversar. É naquele cenário que Vera fica observando as noites de lua ou os dias de chuva. Seu cantinho é no alto da ladeira, de onde se pode ver quase toda a pequena Santa Cruz dos Ferros, com suas montanhas emoldurando o vilarejo e os ventos quase constantes a acariciar rostos e corpos trabalhadores e sonhadores. Ainda ontem ela ficou admirando o casario de sua rua e imaginando vidas e mortes tantas naquele lugar tão antigo. Ela tenta enganar as dores do corpo e da alma que a ferem constantemente. Sente um apelo paradoxal pela vida e morte, pois sabe que, para ter seu sonho realizado, uma vida se vai. Diante disso ela se nega a rezar a Deus pedindo o tão esperado rim. Ela o deseja ardentemente, mas não quer que ninguém morra por isso. Seu coração é de uma bondade infinita e de uma esperança imortal, e acredita em algo que não sabe bem o quê.

Dona Vera não se rende. Faz tudo em casa como se normalmente estivesse. Seu neto, já um mocinho de quinze anos, a ajuda e é como um anjo da guarde em sua vida. No quarto, sozinha às vezes se rende ao choro dos incontidos e dos humanos, mesmo apaixonados pela vida. Seria muito não querer nem chorar e não expressar aquele redemoinho constante a lhe espalhar pedaços de alma por toda a parte. Na sua cadeira contempla os rostos de Jesus e Maria e se perde em preces infinitas, em pedidos vários, em súplicas eternas. Muitas vezes fica apenas num silêncio contemplativo, tal qual Terezinha do Menino Jesus, pois nestes anos diversos, ela não consegue mais ter uma palavra nova pra expressar seus sentimentos tão doloridos. E dona Vera além do mais se preocupa com os filhos, principalmente com a mãe de Thiago que saiu dizendo ir se casar na Espanha há três anos e nunca mais voltou, apenas faz uma ligação no aniversário do filho e no natal. Diz que está bem, mas coração de mãe fica apertado no peito, numa saudade, num sem saber o que acontece de fato.

Sua saúde é de fato um grande problema, mas a vida nunca nos dá uma dificuldade apenas, sempre outras estão rondando por perto. Ela até permite esquecer-se de si mesma, não por muito tempo, porque as dores e o cateter estão sempre a lhe lembrar de suas viagens até a capital para sentar-se na cadeira com o aparelho que lhe permite viver.

Mas espera o dia em que sua vida vai mudar, que poderá viajar com o neto, que poderá ajudar novamente no altar da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, ali pertinho de sua casa. Era ela quem limpava a igreja toda semana e trocava as flores dos sete altares decorados a folha de ouro. Com um carinho de filha, desempoeirava todas as imagens dos santos, talhados na época dos escravos que ali guardavam as vozes silenciadas e lágrimas tantas, sofridas e implorantes da misericórdia divina. É pra lá que seu olhar se volta quase todas as noites que antecedem a viagem naquela van desconfortável para a capital. Aquele cenário, aquela praça escura contrastando com a iluminação do templo lhe faz mergulhar nos seus tempos de mocinha em que namorava com Helvécio e do dia em que se casaram. Ela se lembra perfeitamente do barulho do assoalho quando entrava e contemplava os altares dourados e cheios de curvas talhadas pelos artistas de sua cidade há mais de duzentos anos. Perdida em seus pensamentos, muitas vezes esquece-se da dor e fica ali observando até que o sono venha. Dá um beijo no neto e se deita. Muitas vezes nem dorme, pois de madrugadinha, o motorista para na sua casa e lá se vai ela para o hospital, para mais um dia de esperança. São duas horas e meia de viagem, junto com os companheiros de tratamento. Ela procura ir sempre rindo e contando casos da infância, sempre animando os amigos e procurando otimismo mesmo naquele olhar mais gélido e desiludido que ali se encontra.

Ela se levantou apressada, ainda com o terço na mão e viu quando Thiago também veio correndo. Ela já havia atendido ao telefone quando seus passos lentos se atrasavam um pouco.

__ Vó, é pra senhora, disse ele numa voz nitidamente chorosa.

Dona Vera imaginou o mundo nos quatro passos que lhe separavam daquele aparelho. Imaginou Ester na Espanha pedindo socorro ou outro dos seus quatro filhos em apuros. Pensou em acidente de carro com algum conhecido, pensou que algum companheiro havia falecido, enfim... é sempre assim. Já trêmula por antecipação, pegou o fone e ouviu:

__ Dona Vera? Aqui é o Vítor, do Hospital. A senhora precisa vir agora. Já entramos em contato e a ambulância vem trazê-la imediatamente. Tem um rim novinho aqui esperando pra lhe devolver todos os seus sonhos.

Ela não disse nada. Não conseguiu. Thiago respondeu ao doutor. Ela tremia, travou as pernas, deixou cair o terço e chorava copiosamente. Enfim, via no horizonte um sol brilhando, as nuvens se dissipando e o céu se abrindo por inteiro à sua frente. Via o mundo novamente. Amparada pelo neto que igualmente não se continha de emoção, foi até o quarto beijar as imagens de Jesus e Maria que tanto ouviram suas orações e olhou de relance rápido para a igreja do Rosário e agradeceu. Sentou-se na cama e aguardava. A velha mala, companheira de hemodiálise agora aguardava a viagem para outro lugar.

Na capital, Antônia ficava entre o choro e a alegria de poder salvar alguém. Velava Simone, sua filha de trinta e cinco anos, que havia encontrado a morte numa esquina movimentada quando um irresponsável passou pelo sinal vermelho em alta velocidade.

Dona Vera pensava em quem a teria lhe dado esse presente e chorava também de tristeza pela morte da pessoa, e na sua infinita sabedoria rezava pela bondosa mãe. Pensava ela: agora minha dor é pequena, e por mais que seja grande, é menor que a de uma mãe que agora chora um fim. Nesse paradoxo vida e morte, Vera ouve a buzina e se vai. Esperanças renovadas, agradece a Deus e pede pela alma daquela que agora contempla a face de Jesus e deixa uma parte de si para ela, gratuita e generosamente. Num último olhar para sua rua bicentenária, contempla uma vez mais sua paisagem preferida e nada mais vê, tendo os olhos completamente possuídos pelas lágrimas. Pede à Virgem apenas com uma palavra: protegei-nos.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 15/10/2011
Código do texto: T3277805
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