A PRIMEIRA MORTE DE TIO MANECO

Esta história aconteceu na praia do Bonete, uma aldeia de pescadores, na região sudeste da Ilhabela, (SP), no primeiro dia da novena de Santa Verônica, a padroeira daquele vilarejo caiçara, cujo dia santificado é nove de julho. Uma neblina vinda do mar, todas as manhãs, contribuía, ainda mais, para manter os fiéis em suas casas num clima de respeito à padroeira. A aldeia é uma região pouco explorada, ao invés de ruas projetadas existem trilhas que entrelaçam os quintais, sem energia elétrica até 2005, sem esgoto sanitário ou qualquer outra infra-estrutura planejada, mas em compensação é generosamente abençoada pela natureza com uma belíssima e longa praia, montanhas em forma de um boné com a copa virada para cima ou uma ferradura cujas pontas avançam mar adentro por quase um quilômetro e uma linda cachoeira que, antes de lançar suas águas no oceano, forma um grande lago entre a areia e as rochas que parecem brotar do mar para integrar-se a terra. Neste grande lago é possível banhar-se sem medo das ondas e abrigar as canoas, seus meios de transporte até o continente. Outra forma de acesso para aquela aldeia de pescadores e artesãos é caminhando por trilhas pela mata atlântica por mais de seis horas.

Tio Maneco que era considerado um excelente marceneiro, tanto no trato com trabalhos artesanais como canoa, remo, cuia, armários, caixões funerários, quanto no madeiramento do telhado de uma casa, estava dando os últimos retoques no galpão, de frente para a praia, onde aconteceria o bingo e leilão das prendas doadas pelos donos das redes de arrasto na praia para que a Santa lhes trouxesse sorte na pescaria, uma vez que os meses de junho e julho são os meses da safra da tainha. Este peixe que, por ter em suas escamas o desenho do manto de Nossa Senhora Aparecida, é considerado, pelos pescadores, o peixe mais abençoado do mar. As tainhas saem dos rios em grandes cardumes garantindo uma farta pescaria. Naquele dia, porém, pelo respeito religioso que se tinha pela Santa Verônica, tudo era silêncio. De repente: Tio Maneco morreu! Tio Maneco morreu! Aquele silêncio foi quebrado pelos gritos alucinados de Robertinho “Cabeça de Amborê”, um moleque bisbilhoteiro que sabia tudo o que acontecia naquela comunidade praiana. Cabeça de Amborê foi de uma ponta a outra da praia, pelas trilhas, cachoeiras e tocas, mesmo sabendo que não havia ninguém por ali, ele continuava gritando: Tio Maneco morreu! Tio Maneco morreu! Todos correram para o galpão sem acreditar muito no que estavam ouvindo, embora todos soubessem que “Cabeça de Amborê” era abelhudo, mas não era mentiroso. Em pouco tempo o galpão estava lotado. Todos queriam ver tio Maneco pela última vez. O primeiro a se aproximar de tio Maneco foi Gé Jones que ao vê-lo estirado no chão chamou seus amigos Manuquim e Dindinho de lado e, depois de uma longa conversa, foram até a casa de Maneco pegaram um caixão funerário construído pelo próprio Maneco, levaram para o galpão e, na vista de todos, colocaram o corpo inerte de Maneco, encheram o caixão com flores, as mais bonitas que tinham em seus jardins, fecharam o ataúde e ali mesmo aconteceu o velório.

Todos queriam saber o que teria acontecido com o falecido. Os comentários eram os mais variados possíveis, uns levantaram a hipótese de que era pelo fato dele estar trabalhando naquele dia, mas ele estava trabalhando em prol da Santa, outros acreditavam que era pelas seqüelas do tempo de infância quando ele sofreu de várias doenças infantis como sarampo, rubéola, caxumba, poliomielite as quais lhe deixaram algumas seqüelas como o braço direito mais curto que o braço esquerdo além do baixo índice de audição. Apesar destas seqüelas tio Maneco era uma pessoa extrovertida, brincava com todo mundo, contava piadas e não negava favor a ninguém. Seu peso era compatível com a sua altura de 1,60m. Tinha os cabelos pretos, bem lisos, olhos claros, tendendo ao verde. Havia até quem temesse o desaparecimento das tainhas, insinuando que a comunidade poderia passar por uma escassez de alimento e fonte de renda naquele inverno. O velório transcorreu normalmente com muito repeito.

Na manhã seguinte, quando as estrelas perderam seus brilhos para o alvorecer, uma canoa com três remadores e o esquife de tio Maneco lançava-se ao mar rumo ao continente. Todos os corpos são, obrigatoriamente, levados para o continente. Os três remadores eram dispostos de maneira que um ficava na popa (traseira da canoa) remando de ambos os lados orientando e dando rumo à navegação enquanto que os outros dois remavam na proa, cada um de um lado, impulsionando a embarcação e entre eles o féretro.

Tão logo a canoa singrou o mar os nativos ainda inconformados com a morte de Maneco, retomaram suas atividades normais. Algumas senhoras foram para a capela rezar, mas segundo Cabeça de Amborê, Lili, Filó e Zenaide se engalfinharam numa briga sem fim, se autodenominando herdeira de Maneco em razão da morte. Vale lembrar que Maneco era solteiro, não estava namorando e nunca tivera filho e uma destas mulheres era casada.

Tão logo a canoa deixou a praia, as tainhas começaram a acompanha-la saltando lado a lado. Quando já estavam bem afastados da praia, a uma distância da qual não se avistava mais as pessoas que ficaram na areia nem tão pouco a torre da igreja, para a surpresa dos canoeiros, as tainhas começaram a pular uma de cada vez, depois duas, três, quatro, no mesmo sentido da navegação, como se fossem golfinhos, pulando, pulando. Pulando cada vez mais alto. De repente estavam pulando por cima da canoa onde estava o caixão, oito, dez, doze tainhas, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, e quando se olhava o mar não se via o cardume nem tão pouco as tainhas que acabaram de pular. Era estranho. Uma sensação esquisita tomou conta dos canoeiros, mas continuaram remando e as tainhas continuaram pulando.

Quando viraram a Ponta do Morcego, as tainhas pararam de pular, o caixão se abriu e tio Maneco sentou-se. O remador da popa, apavorado, largou o remo e pulou no mar. A canoa se desgovernou. Os remadores da proa (frente da embarcação) olharam para trás e vendo tio Maneco sentado no caixão e o remador no mar não tiveram dúvidas, abandonaram seus remos e se lançaram ao mar, também. Os três que já estavam com calafrios por causa das tainhas, nadaram com todas suas forças para a costeira. Quando estavam bem afastados da canoa olharam para trás e viram tio Maneco de pé, enrolado no pano branco que forrava o caixão e parte do pano pendurado em seus dedos, formando uma imagem fantasmagórica, sinalizando com as mãos para que voltassem e o ajudassem. Em vão. Quanto mais ele levantava os braços mais fantasmagórica ficava sua imagem e a cada movimento que ele fazia mais os três remadores nadavam mais forte e se afastavam da canoa. Extenuados de tanto nadar, os três amigos remadores, escalaram a costeira e embrenharam-se pela vegetação costeira e pela mata atlântica em busca de uma trilha que os levasse de volta ao povoado. As flores do caixão caíram na água e formaram em rosário, contornando a canoa, pela proa, atraindo borboletas e beija-flores.

De repente, “cocoricó, cocoricó” um galo cantou. Depois outro, depois outro... um gato miou, um cachorro latiu e começaram a caminhar para a praia. Mais uma vez Cabeça de Amborê, chamou a atenção dos fiéis interrompendo a missa para falar dos animais. Todos deixaram a igreja e quando chegaram a praia, lá encontraram uma orquestra de animais, afinadíssima, como se estivessem sido ensaiados por um exímio maestro.

Eis então que surge no mar flutuando, entre pássaros e o rosário de flores, que não perdia uma pétala sequer, uma estranha embarcação que quanto mais se aproximava da praia mais os afinadíssimos animais cantavam. É um barco a vela disse Silidônio! Mas que vela estranha, parecem duas tampas de caixão, comentou Tilaco. É a canoa de Dindinho retrucou Silidônio!

Quando aquela embarcação bizarra tocou a areia, ouviu-se o mugido de um boi do alto do morro do gado, a orquestra animália parou, os vertebrados cercaram a canoa de popa a proa sincronizaram mais uma sinfonia e se retiraram da praia para seus respectivos quintais e, alguns minutos depois, surgiu ainda enrolado no pano branco do esquife, sob os olhares atentos, a figura imponente de Tio Maneco.

Assim Cabeça de Amborê me contou, assim contei a vocês. Quem gostou conte outra vez.

Poeta dos Mares
Enviado por Poeta dos Mares em 14/10/2011
Código do texto: T3277158
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