DE CARNE, DE SONHO E DE NEVE

Gosto muito particularmente de uma poesia de Ferreira Gullar na qual ele fala de amores, lembranças e... esquecimentos. Esquecimento parece uma palavra fria para denominar um lugar destinado a relegados (pessoas, momentos, fatos, coisas...). Mas o poeta, em sua sabedoria encantadora, me apresentou a possibilidade de uma definição perfeita para o tal substantivo: lugarzinho recôndito na alma para guardar o que temos de mais precioso, sem o risco de perdê-lo em meio a um emaranhado de recordações. O esquecimento pode ser sempre uma surpresa especial...

Nasceu em estação fria. Menina branquinha, cabelos cheios de anéis, olhos graúdos, boquinha vermelha pintada a pincel. Por ser tão alva, puseram-lhe o nome de Branca e, talvez pelo frio sentido naqueles tempos, acrescentaram-lhe a Neve. Combinação harmoniosa! É o que parece.

Branca cresceu entre os campos do quintal da vovó, querida e doce avó, guardada a sete chaves dentro do esquecimento... Lá, nesse mundo fantástico, cabia até criança, bem pequenina ainda, pisar em cabeça de cobra sem ser ofendida. Cabia ainda subir e descer ladeira montada em cavalinho de pau, fazer a bacia de pneu cheia de água do poço virar piscina e até mar, os troncos imensos das árvores enfileiradas em frente à sede eram nave, embarcação, esconderijo, casa, dragão e sei lá o que mais... Tudo isso em companhia dos quatro cavaleiros do Apocalipse – apocalípticos porque eram o FIM!

O cheirinho da terra molhada pela chuva era um convite a novas brincadeiras... Todo o tipo de arquitetura poderia ser criada com um pouco de lama e muita imaginação. A lama lá da Areada não era dessas lamas comuns que se vê por aí, era barro mesmo, por lá havia até uma olaria. Ah! A olaria, esse lugar mágico para a Branquinha. Uma “maromba” imensa puxada por animal ou pelo velho jipe amarelo do pai – com a menina ao lado e vento nos cabelos de anéis... O barro já saía de lá amassadinho, então ia para as formas e depois para os fornos – que mais pareciam muralhas de um castelo de sonho e de neve... Dos fornos virava telha.

Lá na olaria, a menininha aprendeu com a avó a fazer panelas e fogões de cerâmica (de brinquedo!). Aprendeu também sobre a natureza dos bichos e das plantas. “Em tudo há sabedoria”, foi a maior lição.

E vivendo desse jeito, quem disse que se deveria temer a vida? Acho que nem a morte se deve temer! Branca não temia nada até então, ousou sonhar e sonhou...

Sonhou a infância inteira e viveu entre tudo o que mais gostava: cachorrinho “Xolito”, periquito morredor, mico teimoso, cadela “Turquesa”, carneirinho “Kojaque” que até mamadeira tomava, rãzinha escorregadia na palma das mãos da criança. Quando findava a tarde, outra alegria... saltitante via o Fusquinha trazendo a mãe entre as curvas da estrada, era a hora dos mimos!

Outra coisa boa desses tempos, dizia Branca, eram umas florezinhas que surgiam nos campos toda vez que chovia. A tia falou para a menina que eram lírios do campo, se eram lírios, não sei, mas faziam a paisagem parecer uma tela pintada pelas mãos do Criador. A relva verdinha salpicada com aquelas flores lilases, tão frágeis que viviam apenas vinte e quatro horas.

Bem, foi assim que Branca se fez: de carne, de sonhos e de muita memória, que de tão vivas, tiveram que ser guardadas para sempre no esquecimento. E, como disse Gullar, acho que tudo isso ficou com cara de “Cantiga para não morrer”.

Fabiana Gusmão
Enviado por Fabiana Gusmão em 14/10/2011
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