A RELIGIÃO DO SEU AFRÂNIO
Seu Afrânio era um sujeito meio estranho. Pelo menos era assim que muitos dos meus vizinhos assim a ele se referiam. Eu era um menino ainda em formação, de modo que não dava muita atenção ao que diziam. Lembro-me que seu Afrânio era um homem de fala grossa, quase rouca, e que quando chegava à vila, ah, isso eu lembro bem, ele, lá do portão gritava “venha meninada, eu trouxe doces e balas pra todo mundo”, e nós íamos, feitos cavalos bravos. Era uma alegria só, de maneira, que mesmo sendo “um sujeito meio estranho”, seu Afrânio era muito querido por nós e pelos nossos pais. Além de quase todo dia trazer balas e doces, seu a Afrânio gostava de recitar poesias. Era muito comum, numa festa de aniversário ou mesmo de São João, alguém pedir para que ele declamasse alguma poesia. Era encantador vê-lo impostar a voz e frisar cada sílaba. Lembro-me, também, que ele, além de recitar as que eram pedidas, ou mesmo, trazidas por algum vizinho, sempre declamava uma de cabeça, mas antes de começar, introduzia assim “ Não sou contra nenhuma crença religiosa, filosófica ou política, mas, a minha é aquela que tem o Homem como a razão de tudo”, e logo em seguida emendava: “Louvou-te, Ó ateu, por muitos odiado. Louvo-te, porque não crês, no que sabe ser mito fabricado. Louvo-te, porque na terra santa não depositas fé. Louvo-te, com todas minhas forças, a liberdade com que caminhas de cabeça em pé. Louvo-te, ó irmão ateu, andarilho nesse mundo esvaziado de amor e sem compaixão, que ao ver outros dormintes no asfalto frio, vão logo dizendo: é culpado porque não crê no superior e não merece perdão”. E terminava, numa pausa, e depois saia com os olhos cheios de lágrimas.