BRAÇOS ABERTOS

Ele ficou ali com os braços ainda abertos por um bom tempo. Ouviu apenas a porta da sala se fechar e o tilintar das chaves penduradas naquele chaveiro que ganhara como lembrança de uma viagem do seu irmão à Salvador. Era um chaveiro com um berimbau feito em metal, que batia na maçaneta e fazia um barulho sugestivo naquela noite de tempestades dentro, e fora da casa. Ainda não era tarde e ela logo voltaria. Era sempre assim. Atravessava a rua e chegava até a casa de sua mãe, conversava um pouco e depois voltava para casa silenciosamente. Entrava no quarto como se nada tivesse acontecido e se deitava na cama do casal e dormia tranquilamente.

Naquela noite de sábado caía uma chuva torrencial. O céu estava coberto com nuvens carregadas e chovia copiosamente. Humberto permaneceu no corredor da casa ouvindo o burburinho das chaves e os trovões nervosos da chuva, enquanto de seus olhos escorriam lágrimas que brotam da profundeza de sua alma amargurada e do seu coração que ama Lívia apaixonadamente desde o dia que a conheceu. Os braços abertos estavam ali para amparar o corpo dela num abraço pedido, desejado, ansiado que ela acabara de negar, simplesmente saindo de casa, mesmo debaixo de uma tempestade.

Ele caminha em direção à sala e olha pela janela, vendo ainda o vulto de Lívia que atravessara e agora descia a rua até a casa da esquina, onde mora sua mãe e irmão. A enxurrada corria por entre as pedras do calçamento antigo daquela rua centenária. Ao fim da rua, a visão preferida de Humberto naquela cidade. Era uma ladeira, subida considerável, e no alto uma joia do barroco mineiro: a bela Igreja de Nossa Senhora das Mercês, com suas duas torres iluminadas, e em meio à chuva, combinando perfeitamente com seu clima nostálgico ao observar que ela entrava na casa sem ao menos olhar para trás.

Ele senta-se no sofá após conferir se o filho de cinco anos dormia tranquilamente. Observando a casa e a foto do casamento na parede principal daquele casarão, Humberto continuava com seu choro incontido e com seus braços ainda desnudos do abraço de sua esposa. Estão casados há seis anos e há mais de dois, Lívia estava fria e indiferente ao relacionamento. Ele já tentou de tudo, mas para ela nada parece importar. Não fala em separação e diz que ama o marido e a família, mas demonstra com suas atitudes absolutamente o contrário. Ela vive em casa como se sozinha fosse. Não jantam juntos e não vêem TV ao mesmo tempo. Quando ele está na sala ela vai pro quarto e assim vão vivendo de desencontros. Naquela noite ele havia entrado no quarto enquanto ela lia um livro. Ele a tocou, e ela arredia não quis dar-lhe o abraço. Ele pediu, disse que sentia falta de seu calor e ela simplesmente saiu de casa, dizendo que mais tarde o abraçaria.

Humberto sabe que Lívia não vai abraçá-lo. Seus braços estão incontidos no abraço negado e no carinho que deseja ter. Sente que está ficando muito difícil manter o casamento. Quebrou-se o encanto e ele pensa na inevitável separação. Já tentou conversar, mas ela diz que não tem nada e que está tudo bem. Nem ao menos vão mais à missa juntos. Ela sempre procura ir num outro horário para não sair com o marido. Uma hora mais tarde ele levanta-se do sofá, olha uma outra vez pela janela e só vê a rua vazia e a chuva teimosa. Na casa da sogra, luzes acesas. Humberto vai para o quarto e tenta dormir. Sabe que logo a esposa chegará e se deitará a seu lado sem ao menos dizer boa noite. Ela dormirá tranquilamente e ele não. Humberto dorme o sono dos apaixonados e desiludidos. Pensa no filho e passa mais uma noite em claro. Pela manhã ele vai para o trabalho e Lívia abrirá a loja de artesanato às nove horas. A vida resumiu-se numa rotina infernal, num ir e vir do trabalho, num silêncio profundo em casa quebrado apenas pelos barulhos de Júnior, que passa o dia todo com a vovó e às vezes até dorme lá. Na casa, a bela mobília e o conforto em que vivem contrastam com o desprazer da vida a dois, da solidão compartilhada.

Da cama, ele ouve o barulho da chuva e espera acalmar suas tempestades internas. Humberto tem uma enxurrada dentro de si, cada vez mais intensa e devastadora, inundando casas e fazendo os rios transbordarem. Chegará o momento que, inevitavelmente as águas levarão arrastadas toda a sua vida conjugal, a menos que Lívia perceba o perigo das águas nervosas e cuide para que Humberto sinta-se uma pessoa existente de fato dentro de sua casa. Resta a ele a esperança, que dizem, é a última que morre, e assim sendo, um dia chegará ao fim.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 10/10/2011
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