Ponto G.
1.
O sinal vermelho estava mais vermelho que o normal, ofuscava, ele piscou duas, três, quatro, cinco vezes e respirou fundo. O sinal abriu e ele avançou rua acima. Poucos quarteirões e estava parado novamente em outro sinal, trânsito lento, sol quente, transpiração, suor, vontade de tomar um chopp, dois quem sabe, estava evitando, a barriga estava saliente, diziam, ele também achava, alias todos achavam, principalmente Solange. Não resistiu parou no bar de sempre, estranhamente vazio àquela hora, mas isso não era problema, na verdade era até melhor, detestava ambientes barulhentos, tomou seus dois chopes em silêncio. Olhando ao redor, uma ou duas caras novas, as de sempre, o japonês por detrás do balcão, o negro alto de cabelos brancos apoiado com o cotovelo no balcão ensebado, enfim, rotina e tédio, o chope estava gelado, pagou e saiu.
A rua era feita de sinais fechados, assim como a vida, filosofou, pensou em Solange, estava em casa, assistindo algum filme na TV, ou folheando alguma revista. Pensa então em seu casamento, com dois meses de casado a monogamia tornou-se insuportável, um sacrifício ao qual ele não suportou. Olha o retrovisor, vê um carro preto, quatro portas, fica atento, nunca se sabe o que pode acontecer, ainda mais nesse seu ramo de negócios.
Essa noite a missão será simples, confere o material de trabalho, duas pistolas IMBEL calibre 40 e munição de sobra. Olhou para o retrovisor e o carro não estava mais ali. Melhor assim, uma preocupação a menos, coça a cabeça, olha debaixo das unhas e ali estão as caspas, xampu anti-caspa algum resolve esse problema. Engata a marcha e avança o sinal fechado. Que se dane!Os pais eram negros e ele estranhamente pálido, sabia da adoção, mas nunca questionou os pais e eles também nunca disseram nada, ficou por isso mesmo até que ele matou os dois, um acidente com uma arma que o pai guardava na ultima gaveta do armário, com o passar dos anos ele cresceu e a gaveta já não era mais alta o suficiente para separar seus dedos finos do gatilho leve de uma arma semi-automática, e o estrago estava feito, os dois corpos encontrados na cozinha da casa de subúrbio, numa tarde de domingo, sangue para todo o lado, manchando a geladeira e o fogão e se misturando ao molho do resto de espaguete do almoço. Os vizinhos nunca souberam de seu paradeiro, ele diz que suas duas primeiras mortes, a dos pais, fora um acidente, a arma do crime nunca fora encontrada, ele a guarda até hoje no porta-luvas do carro. Plínio, o nome que adotou para si, achou bonito era o nome de uma rua “Rua Plínio Salgado” então ele se auto-batizou de Plínio e gostou, olhou no espelho e sorriu, disse para o reflexo que via – “Muito prazer, meu nome é Plínio!” e pronto estava feito, um novo nome para um novo homem, foi então que deu dois tiros na prostituta ainda nua e com as pernas entreabertas deitada na cama do hotel barato. E nem foi para economizar, afinal gastara uma bala, depois soprou o cano da arma, como nos filmes de bang-bang em preto e branco, dessa vez foi por querer, e reconheceu que sentira um leve frenesi quando o sangue jogou da loira de unhas vermelhas, não que não tenha sentido satisfação alguma ao atirar nos pais, fora apenas um acidente, e acidentes não causam orgasmos, sentenciou filosoficamente. Só parou de matar prostitutas quando já não via mais graça nisso, a ultima foi até engraçado ele riu um riso torto e sem graça, mas havia achado engraçado, ela também era loira e pintava as unhas de vermelho, vermelho berrante e vulgar, quanta vulgaridade ele cuspiu no espelho do banheiro, cuspe meio saliva e meio ódio e uma pitada leve de um catarro pálido, atirou quando ela estava com as pernas entreabertas, ótima mira, tiro certeiro, acertou bem na boceta e riu, -“Acertei seu ponto G”. Depois disso cuspiu mais uma vez e foi comer um resto de arroz doce que estava dentro do carro. Comeu o arroz doce todo e nunca mais matou prostitutas, nunca mais acertou o ponto G de mulher alguma. Não que fosse um paladino do sexo, longe, muito longe alias, de ser um Rocco Siffred. O sexo, alias, era cansativo, preferia se masturbar, era mais rápido, mas limpo, e o fazia sempre que podia. Olhou para o relógio no pulso, as armas no banco do carona, foi então que viu mais uma vez o carro preto, logo atrás, entre dois carros e um ônibus escolar, Plínio não estava com pressa e resolveu deixar o sinal abrir. Quando o sinal abre ele dobra a esquerda e para, estaciona o carro de frente ao sexy shopping que Solange compra seus brinquedinhos, ela sabe o nome de todos eles e como usá-los, aprendeu na época em que fora atriz pornô, haviam ainda alguns filmes no apartamento dela, todos em VHS, foi deixada de lado quando se negou a colocar silicone, -“Exigência da indústria!” disse Jeff seu ex agenciador. Ela e Plínio se conheceram na noite em que ele matou Jeff, serviço rápido, um tiro certeiro entre os dois olhos, e nem estragou os óculos. –“Coisa de profissional” gabou-se depois já na cama com ela. Eles riram, beberam e fumaram, e ele não lhe deu um tiro na boceta, afinal já não matava prostitutas. Estaciona o carro e entra no sexy shopping, que alias, se chama Ponto G. todos os brinquedinhos que ela gostava estavam ali, alongadores penianos, masturbadores, calcinhas comestíveis, e mais uma monte de coisas que ele ficou imaginando onde se colocava, um olho nos itens eróticos, outro olho na rua para ver se o carro preto de quatro portas passava, viu o carro avançando o sinal e sumindo, vidros pretos não dava pra ver quem estava lá dentro. Plínio então sai da loja sem comprar nada e volta para dentro do carro. Jeff era gay, mas não o matou por isso, simpatizava com classe, um dia até mesmo fora na paulista no Dia do Orgulho Gay, o matou por que estava usando esmaltes vermelhos e falando alto com a atriz, Solange, ele, não gostava que falassem alto em sua presença, e não gostava de esmalte vermelho, resumindo odiava mau gosto, enfim fora uma bala bem gasta, e não se esqueceu de soprar o cano da arma, levou o relógio dele, -“A única coisa de bom gosto que a biba tinha!” disse mais tarde ainda na cama com a ex atriz, nessa ocasião ele descobriu que os filmes pornôs eram como todos os outros, apenas isso, filmes, tudo colado, montado, recolado e remontado. “-Lixo como todo o resto da indústria do entretenimento.” Foi assim mesmo que ele disse “indústria do entretenimento” e então cuspiu no espelho do banheiro saiu do quarto e deixou Solange dormindo, com as pernas entreabertas. Não havia mais sinal do carro preto e ele arrancou rua acima, gostaria de dar uma passada em casa, ver Solange, tinha alguns amigos que não entendiam como se casa com uma ex atriz pornô, ele matou todos, não gostava de gente burra, não entender uma coisa dessas, é tão simples como casar com qualquer outra mulher, “É só ir a cartório e assinar os papeis, simples assim!” O ruim de ser casado com uma ex atriz pornô é que já não existem mais segredos no sexo, ela conhece todos, e o sexo vira rotina e a rotina vira tédio e o tédio pode virar impotência sexual, por isso a monogamia é um crime.
2.
O homem usava calça, colete e terno Giorgio Armani, deviam custar uma fortuna, pensou Plínio dando um último trago e jogando a guimba do cigarro fora, de onde estava podia matá-lo com apenas um tiro e nem iria sujar a camisa branca que estava por baixo do colete, mas qual seria a graça disso, era preciso contaminar toda aquela elegância afetada, era preciso que o sangue jorrasse para todos os lados, mas esse não era seu estilo, “que pena!” resmungou. Tira o sanduíche de dentro do saco plástico, caprichosamente embrulhado pela moça da padaria, duas quadras de distância de seu apartamento, pão queijo cheddar, que ele deduziu ter uns 18 meses de envelhecimento antes de ser colocado dentro de seu pão, presunto, maionese, duas folhas de alface, rodelas de tomate e de cebola, saboroso, a maionese escorreu pelo dedo antes de grudar no queixo. O homem carregava na mão esquerda uma pasta executiva tipo 007 com segredo, segurava com certo desleixo, observou Plínio, usando apenas três dedos, o dedo mínimo meio que estava pendurado ao lado da alça da pasta. Adora queijo Cheddar, sabe que o queijo tem esse nome por ter sido criado no vilarejo de Cheddar, que fica no condado de Somerset, na Inglaterra, mas nada disso importa enquanto mastiga. Não iria matar o homem essa noite, não iria sujar um Armani tão caro, iria apenas observar sua rotina, segui-lo de uma distância segura, “que falta que faz um choppe bem gelado.” O pão descia garganta abaixo com uma relutância inesperada, faltava algum liquido para empurrá-lo. O homem desabotoa o Armani e abre a porta do carro. Plínio deixa o sanduíche sobre o banco do carona e gira a chave do carro. Espera o homem sair com o carro do estacionamento. Plínio mora em um apartamento de dois quartos cubículos estreitos onde é quase impossível a coabitação de um casal, está sempre esbarrando nas coisas, tropeçando aqui e acolá, gosta em especial do sofá, onde passa madrugadas manipulando o controle remoto da televisão, a TV a cabo é a única coisa que dá um certo ar de sofisticação aquele mausoléu, já Solange adora o “apertamento” onde vivem, adora decora-lo com quadrinhos piegas, vasinhos com flores naturais, que sempre morrem por que ela esquece de água-los, diz que o primeiro filme dela foi rodado em uma apartamentinho desse, quase não havia lugar para as câmeras, o diretor, o iluminador, enfim, anos depois Plínio assistiu o filme e não gostou, não gostou nenhum pouco, ela começava chupando um negro de quase dois metros, de altura é preciso esclarecer, e ele não foi com a cara do negro, não gostou de como ele tratou Solange durante a ação, sexo bizarro, animalesco e sem qualquer romantismo, dois dias depois o corpo do ator foi encontrado numa casinha no subúrbio com um tiro certeiro entre os olhos. Plínio segue o homem a uma distancia segura. Sabe que o sujeito se chama Romualdo, não se lembra do sobrenome, o homem é do ramo hoteleiro, está também metido com vários negócios escusos, máfia de caça níqueis, contrabando, e outras coisas que ele não sabe, não teve saco pra ler o dossiê completo. Sabe que o homem tem o hábito de jantar comida japonesa todas as noites com exceção do sábado e do domingo. Plínio o segue então até o restaurante japonês, não é o Aoyama, mas tem no cardápio pratos como sushi, yakissoba, atum, camarão, tempurá, yakimeshi, e mais um monte de coisa com arroz, shoyo e peixe cru, enquanto o homem janta Plínio entra em uma livraria do outro lado da rua, livros, centenas de livros, ele gosta de ler, crime e castigo foi seu livro de cabeceira durante anos, um dia Solange o jogou fora, ela quase levou um tiro aquele dia. Consulta o relógio, quarenta minutos já se passaram desde que o homem entrou no restaurante japonês, “demorado comer com pauzinhos”, ele espera com estoicismo, que seria comovente se não fosse ardil e friamente calculado. Às vezes tem a impressão de estar ficando paranóico, com a impressão que tem que um carro preto de quatro portas que está sempre o seguindo, em algumas noites sonha com o carro, está vazio, nenhum tripulante, o carro corre em sua direção como um personagem bizarro qualquer do Stephen King, então ele acorda suado e com a garganta seca olha para o lado e Solange está dormindo com as pernas entreabertas como na primeira vez, se pergunta então por que toda prostituta que conheceu dormia com as pernas entreabertas, “ossos do oficio”, ele se levanta, toma um copo de água, lava o rosto, cospe no espelho do banheiro e depois volta para a cama. O homem sai do restaurante segurando o Armani sobre o braço esquerdo, enquanto abre a porta do carro com a mão direita, Plínio volta para dentro do carro e dá mais uma mordida no sanduíche, a mão fica melada de maionese, ele engata a marcha e sai atrás do carro do homem que colocou o Armani confortavelmente no acento do carona. Quinze minutos e o homem estaciona o carro na frente de casa, uma casa enorme, “deve ter uns duzentos cômodos” resmunga Plínio mastigando o ultimo pedaço do sanduíche. Fica na frente da casa mais ou menos uns quarentas minutos ouvindo dúzias de jazz nostálgicos, John Coltrane Stan Getz , Paul Desmond, Cannonball Adderley, Charlie Parker, Joe Henderson, no porta luvas dúzias de regravações em fitas cassetes. Só ligou o carro e voltou para seu apartamento quando todas as luzes da mansão do homem se apagaram e o silêncio tomou conta de toda a vizinhança.
3.
Na infância sonhou ser jogador de basquete, tinhas as pernas cumpridas, os braços e as mãos enormes, sonhava que estava avançando para dentro do garrafão e saltando para mais uma bandeja, nesse momento sempre caia da cama. No entanto, não havia quadra ou bola de basquete no reformatório, de modo que teve que mudar de idéia, e desde então nunca mais caiu da cama. Depois do basquete quis ser uma porção de outras coisas, coisas que não havia no reformatório, coisas que as até mesmo aquelas crianças que tinham pai e mãe penavam para conseguir, por isso desistia sempre, era preciso pai e mãe, ele não os tinha, havia matado a ambos. Lembra-se quando a policia chegou à casa, encontrou os corpos dos pais caídos e ele, Plínio, escondido, encolhido, chorando dentro do guarda roupa, e depois uma sucessão de vozes, braços, mãos o tocando, o apertando, vozes lhe perguntando coisas, palavras que ele não conhecia, charutos, cigarros, pigarros, fardas, armas, cacetes, óculos, tudo misturado em um enredo piegas de seriado americano, enfim se perdeu no meio de tudo aquilo a única coisa que conseguiu foi vomitar até não haver mais nada no estomago. Plínio está mais uma vez com o carro estacionado de frente para a casa do homem do Armani, três horas da tarde o sol torra tudo ao redor, o homem ainda não saiu, Plínio vigia a casa desde as sete horas da manha, já tomou uma dúzia de latas de cerveja e três sanduíches e nada do homem sair de casa, apenas uma mulher lava a calçada, ele desconfia ser a empregada. Usa uniforme, diferente daqueles que as empregadas usam nas novelas do canal 13, a cerveja está ficando quente, porcaria de isopor, está com sono, vontade de encostar a cabeça no banco do carro e dormir. Cochila, acorda com os sons, crianças gritam entusiasmadas, Plínio abre os olhos, sente ímpetos de se espreguiçar, mas os braços e as pernas são longos demais, além das proporções do espaço interno de um carro popular, vê então as crianças que gritam felicíssimas, são duas, um casal, a menina é loira, vestido branco, cabelos loiros, deve ter por volta de dez anos de idade, o menino também loiro, boné, camisa regata e chinelos, e finalmente por detrás das crianças Plínio vê o homem, já sem o Armani, apenas de camisa florida, shorts e chinelos de dedos, cabelos desgrenhados, quase não reconhece, a não ser pela barriga saliente, “e dizem que comida japonesa não engorda”, pensa, o homem coloca coisas no porta-malas, cestos, bóias para as crianças, somente então Plínio houve uma voz diferente, a voz de uma mulher, então ele vê, como que em câmera lenta, cena típica de filme europeu ruim, Plínio gosta de filme europeu, apenas não gosta muito dos italianos, são sentais demais, mas nesse momento vê a mais bela mulher que já viu na vida, ela esta descendo as escadas em direção à rua, loira, alta, sexy, cabelos esvoaçantes, e mais meia dúzia de clichês baratos, por um momento perde o foco da missão e sente vontade de se masturbar ali mesmo dentro do carro, naquele calor imenso, seu carro popular não tem ar condicionado de série, o que nesse momento passa a ser uma verdadeira lastima, tudo é muito rápido, em minutos todos estão dentro do carro, que não é popular, importado, deve ter custado uma fortuna, “ os olhos da cara”, teto solar e tudo o mais. O homem do Armani, agora sem Armani, arranca com o carro, mas Plínio ainda consegue ouvir as vozes das crianças, quase um zunido, e jura por Deus, que ainda consegue ver a mulher loira descendo a escada vestida de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado. Pelo que tudo indica a família vai para a praia, mas seria pequeno burguês demais, e mentes pequeno-burguesas em sua maioria não usariam aquele Armani, na certa estão se dirigindo para algum clube, ou outro lugar qualquer, onde não se misturem com gente igual a ele, Plínio Salgado. Ele engata marcha ré e vai embora, não iria matar um homem que sai para se divertir com os filhos e a mulhere daquela maneira, pelo menos não o mataria dessa vez. Para mais uma vez enfrente ao sexy shopping e compra uma lingerie minúscula para Solange, ascende um cigarro e espera o sinal abrir.