7ove

Bebuns profissionais ficariam desgostosos com os dois dedos de cerveja abandonados no fundo do copo. Esperando um garçom apressado para retirá-lo. Esperando um desiludido Aedes Egypt pousar em sua borda por total faute de mieux. Um ateu amigo meu ficaria desgostoso com esse CD de louvores que está na minha mesa; CD este que foi tomado num empréstimo meio involuntário de um evangélico companheiro de trabalho. Pareço, sob estes indícios, estar me tornando uma pessoa melhor. Não se engane. A questão é que eu desaprendi como se diz NÃO em momentos oportunos; voltei a me importar com o que os outros sentem ou pensam sobre mim. E isso não é se tornar melhor, é se tornar fraco e vulnerável... É voltar à esqualidez que precede as mágoas e tristezas mais profundas do meu ser; é voltar a crer no improvável; voltar a crer na sorte, no amor; voltar a crer nas pessoas e num mundo melhor - mesmo que seja tão-somente o MEU mundo. No entanto, não me sinto encorajado a pedir outra bebida que, sob seus auspícios, poderia me fazer retroceder-evoluir-voltar-a-estagnação-do-niilismo. Devolvo garrafa e copo. Peço refrigerante, bombom e chicletes. E escrevo. Escrevo como se minhas palavras - cada uma delas - fizesse parte integrante de uma rajada de metralhadora giratória que extingue tudo tudo tudo que possa vir a me fazer mal. Escrevo. Escrevo sem foco, sem intento; aperto a caneta no papel e a faço deslizar como se fosse uma faca no pescoço de um inimigo. Atiço a liberação de serotonina com caneta e chocolate. Atiço a adrenalina com caneta e cafeína. Atiço o despojo da minha malandragem com mascadas estridentes de menta misturada a chocolate e cafeína. Escrevo, escrevo, escrevo. Escrevo como alguém que precisa de respostas metafísicas que meros humanos que por mais que grandiloqüentes e cultos e profundos que sejam-são-e-foram não conseguem dar. Dezenas de pessoas entram e saem e falam alto umas com as outras e a televisão fala e as pessoas falam alto com/em celulares e embriagadas esbarram no meu cotovelo e a caneta causa anomalias em palavras e os hormônios e os fedores e as energias pairam no ar; lâminas helicoidais de liquidificadores balem/gemem e cortam e trituram; copos e garrafas se espatifam e se esvaziam; batom e músculos e testosterona e desejo e melindres se abraçam em fluxogramas holográficos fosforescentes e decadentes; hecatombes de culpas espancando desavisados; solitários amargando perdas de não-conquistas; borracha com asfalto e lábio com lábio e madeira no vidro e estufas de cânceres desligadas - é isso tudo, aqui e agora, sem culpas, livre, livre, livre, livre, livre... Cansado me sinto. Minha efígie desgastada, minha pele chupada e macilenta, meus olhos baços sobre olheiras escuras e profundas. Meu amor que não vinga. Meu amor que... Não...

06/10/2011 - 20h35m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 07/10/2011
Código do texto: T3263532
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