OLHOS VAZIOS
Eu percebi que ele estava cabisbaixo quando cheguei. Próximo dos
pés, uma mala de couro, daquelas grandes, para longas viagens.
Decerto um jovem mais novo que eu, sentado num banco
semelhante àqueles de praça, enfrente a casa dela.
Aquele banco não estava ali antes. Aliás, a casa estava diferente: as
janelas, a cor... não sei por que, mas a casa me fez lembrar a casa
doce da bruxa da fábula de "João e Maria".
O jovem vestia jaqueta e boné. Parecia esperar o ônibus. Me lembrei
dos velhos tempos de colégio, quando na sexta-feira à tarde todos os
garotos estavam "uniformizados para viajar", ansiosos e prontos para
voltarem para casa. Era até difícil saber quem era quem.
Me aproximei e ele ouviu os passos.
- Quem está aí? - perguntou, assustado.
- Calma, rapaz. Sou eu! Você estava dormindo?
- Não.
Notei a bengala fina que ele segurava, olhei para os olhos dele e
então me dei conta de que era cego. Eu fiquei sem graça:
- Me desculpe, eu não quis assustá-lo...
- Não se preocupe, eu estava distraído.
Uma música interrompeu nossa conversa. Vinha da casa, certamente
de um aparelho de som que acabara de ser ligado. A janela da frente
estava um pouco aberta e eu percebi alguém lá dentro. Era ela! Eu a
vi e senti o perfume típico de quem tomou banho há pouco: uma
combinação de sabonete e xampu. Ela não me viu e eu preferi não
chamá-la ainda. Continuei a conversa com aquele estranho.
- Nossa, mas que música é esta? - perguntou o garoto, surpreso.
- É Phil Collins. Ou Genesis. Algo do tipo. Ela gosta deste tipo de
música.
- Ela quem?
- A menina que mora nesta casa. É minha amiga.
Eu percebi que ele não deu muita atenção à minha última frase. Eu
mudei de assunto e, sem hesitar, fiz uma pergunta pessoal:
- Você é cego de nascença?
- Não. Eu fiquei assim há pouco tempo.
- De que forma?
Ele "olhou" para mim e disse: "duas cabeças rolaram. Duas rolaram
e três se entristeceram. E eu fiquei assim...".
O olhar marcante do garoto me chamou a atenção. Ele sabia
exatamente onde estavam os meus olhos! Um olhar intenso, mas
vazio. Não tive tempo de perguntar o que ele fazia ali. Não sabia se
ele esperava alguém ou um ônibus... talvez ele até pudesse ser um
amigo que não tive oportunidade de conhecer.
Horas depois, durante o trabalho, presenciei uma cena que me fez
lembrar do encontro descrito anteriormente: um Husky Siberiano
branco, preso a uma coleira e deitado, olhava para mim com aqueles
impressionantes olhos azuis. Estava imóvel, mas parecia querer falar
comigo. Fixou os olhos em mim, incansável. O mesmo olhar
marcante. O mesmo olhar vazio. Olhar de quem espera por algo.
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Este texto faz parte do e-book "Noites do Jardim". Leia mais acessando o link:
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