Os Olhos da Cadela

“Linda; boa noite!

As crianças estão bem; lancharam comigo; talvez, por isso, não tenham fome quando você chegar. Vou dormir na casa da Rosana. Neguinha, não consegui comprar os livros que você pediu; não há livraria que os tenha.

A Angela pergunta se vamos à praia no feriadão; já descartei; não estou podendo. Se você estiver a fim, ligue pra ela. Desculpe, peguei um par de meias das suas; as minhas estão todas sujas; pede pra dona Floripes lavar minhas roupas, já estou no grito. O CD do Zeca está imperdível; boa qualidade, mas o preço muito azedo; a Chica vai emprestar o dela e a gente grava. Tem requeijão na geladeira e pão fresquinho no armário. Ah... ia me esquecendo: o Clovis vem domingo, com as crianças e a nova namorada; ela se chama Claudia.

Deixei o dinheiro pro mercado; se dona Floripes for fazer as compras, peça daquele pão com gergelim. É bom, né ?

Te amo. Beijos.

Tiago.”

Como fizera nos últimos anos, mesmo estando indisposta, Zelinda levantou-se as cinco e quinze. Releu o bilhete. Prendeu-o, novamente, na porta do armário, e foi para o banho.

Não acordara bem. Poderia faltar, mas achava que não valeria a pena.

Tinha contas a pagar e as contas são sempre implacáveis. Chegam ao portão, como se dinheiro brotasse em árvore ou na gaveta da cômoda. Nunca dão folga: é luz, água, gás, telefone, IPTU, internet dos filhos, carnê do fogão novo, mercado... E não adianta querer fugir; conta é sempre imperativa, não conhece meia medida: é sim ou o fim; é pagar ou ficar sem. O salário já era pouco; se faltasse, perderia o dia e o domingo e, “de quebra”, ficaria mal com a chefia. Não convinha o desconto, nem ficar mal com a chefia. As contas e as chefias, não são apenas imperativas, são ferozes; não querem faltas, atrasos, nem desculpas.

A dor que a incomodava desde a noite, logo pela manhã, voltara intensa, provocando-lhe uma sensação incômoda no estômago. Úlcera? Gastrite? Gases? Não sabia. Podia até ser verminose. “Verminose não; melhor, que sejam gases.” Fosse o que fosse, aquilo haveria de passar; mas, por via das dúvidas, fez um chá de camomila e engoliu uma cápsula de Omeprazol.

As quinze para as seis, já pronta pra sair, foi acordar as crianças. Os filhos precisavam entrar na escola às sete. Não podiam perder a hora. Eram a esperança de uma vida melhor. Se continuassem estudando, e não se envolvessem com drogas, poderiam ter um futuro melhor que o seu. “O mundo é cruel e cada vez pior... tomara que as crianças...” “A gente se esforça; educa os filhos; mas, o mundo é um inferno.”

Mil coisas embaralhadas na cabeça, enquanto arrumava a bolsa. Conferiu os trocados, o vale-refeição, o crachá... “Se a Chica emprestar o álbum do Zeca, não preciso comprar; melhor assim.” “Então o mano se amigou de novo; Claudia... vamos ver a nova mulher... tomara que dessa vez dê certo... ele merece.” “Preciso ligar pra Angela, ir à praia com as crianças vai ser bom... preciso descansar... arejar a cabeça.”

Eram seis e vinte quando Zelinda deixou os filhos, mal humorados, terminando o café da manhã. Fez as costumeiras recomendações e saiu apressada. Na rua, pescoço enterrado entre os ombros, afundou as mãos nos bolsos do casaco. Pela cabeça, passou-lhe a possibilidade de que estivesse com febre. “No trabalho vou pedir um termômetro; medir a temperatura.”

Depois da chuva da madrugada, a rua esburacada, era quase

Impraticável; lixo, barro e poças d’água. “Droga... não há sapato que agüente uma nojeira dessa.” Ocorreu-lhe de participar das reuniões da Associação de Moradores. Em vila Nhocuné, a maior parte das ruas era pavimentada; no entanto, Zelinda tivera a sorte (ou o azar) de morar na única rua sem asfalto.

Há anos reivindicavam melhoria para o bairro; mas, a maioria dos moradores já desanimara. Também, não era para menos; uma dezena de políticos passara por ali, deixara uma centena de promessas; mil apertos de mão e, sumira.

“Gente... século vinte e um, e eu amassando barro feito uma roçeira... é um absurdo.” “A politicalha só se preocupa com a conquista do poder. Votos contados e uma vez instalados em seus gabinetes; viram as costas aos pobres.” Enquanto a cabeça cuidava do abandono e da justificada revolta; com as barras das calças arregaçadas, os pés iam pulando as poças e, inutilmente, tentando desviar-se da lama. “Já é tempo disso aqui melhorar, mas quem disse que pobre tem querer?” “Na próxima, meu voto vai pra oposição... de novo.” “Essa corja, ainda, há de nos pagar.”

Pensando nas eleições, chegou à avenida principal. Numa moita retirou o barro grosso do solado. “Noventa reais jogados na lama... no lixo.”

Era preciso limpar bem. Do mesmo modo que detestava que a enlameassem, não queria sujar as pernas de ninguém. Esfregou os solados no asfalto. “Melhor, impossível, vai assim mesmo.”

Cabelos molhados e roupa úmida; preparou-se para atravessar a avenida. Sentiu algo roçar-lhe as pernas. No susto percebeu a cadela.

-Jennifer?! Ô cachorra sem vergonha... apareceu, é?

A cadela havia desaparecido há mais de mês. Viera pequena e crescera junto aos filhos; mas, por descuido de portão aberto, fugira. Durante anos fora a alegria das crianças. Súbito, sumira. Pela vizinhança, nenhuma notícia. Ninguém sabia pra onde. E, agora, sabe-se lá de onde, surgia ali, do seu lado. Se esfregando; fazendo festa em suas pernas. Sem qualquer lógica, viu-se refletida na cadela. Sua vida, sempre, fora tão sofrida quanto à de Jennifer. Sorriu com os folguedos da cadela. “Sarnenta, feinha... mas sempre alegre.”

Abanando o rabo, fazendo festa, a cadela pôs-se a atravessar a rua. “Se voltasse pra casa agora, com Jennifer, os meninos iam ficar contentes... eles têm saudades” Mas não podia voltar. “Por onde terá andado essa cadela?!”

-Volta Jennifer... pra casa... volta!

O buzinaço e a frenagem no asfalto fizeram-na voltar à realidade.

O som ôco, como que afofando as carnes de Jennifer, foi a última coisa que ouviu. Não se viu atirada ao ar, nem o estatelar-se no chão do asfalto. Não sentia dor, não sentia nada. O corpo flutuava leve, inexistente. Não era corpo; era uma sensação. Os olhos baços, turvos e inquietos, buscavam focalizar algo, qualquer coisa que a orientasse. Que acontecera? Não sabia.

Seria capaz de jurar que fora acometida de uma ilusão; sofrera um surto de irrealidade. Aos poucos foi distinguindo a imagem à sua frente. Primeiro; apenas duas manchas por trás de uma névoa leitosa. Depois, deu-se conta de que eram os olhos de Jennifer. “Os olhos são, apenas, duas manchas por trás da névoa” -filosofou.

“São calmos, curiosos, interrogativos.” “São verdes-garrafa... Jennifer tem os olhos verdes-garrafa, sempre pensei que fossem pretos... são verdes.” “Olhos translúcidos, grandes... lindos... tão doces.” Não conseguia desviar o olhar dos olhos de Jennifer.

Tinha a impressão de estar rodeada de gente.

Um vozerio, sussurrado de escândalo, lhe chegava aos ouvidos.

Não conseguia identificar o que dizia. Eram uns: “Moça, ô moça... ajuda ai gente” “Que pena... pois veja você, ainda ontem” “Não mexam nela... tem que esperar o socorro.” “É por isso que eu digo, sem lombada, isso aqui é ...” Mas não ouvia, se pudesse...

Dentro da cabeça, o sussurro lhe parecia o vai-e-vem de ondas

sobre as pedras na praia; ou o vento sobre a ramagem. “A Chica

tem o CD do Zeca; vou fazer uma cópia.” “Vai ser bom ir à praia

com Angela e as crianças; preciso descansar.” “Há anos não tiro

férias.”

Pensamentos rápidos vinham-lhe à mente, como trechos de um sonhos; flashes de uma vida conhecida e sem prazer (sua vida). Pareciam fotografias de um tempo distante, perdido na memória, e que lhe chegavam como que pipocadas de um projetor de eslaides, localizado em pontos difusos do corpo. Era como se o próprio corpo se expandisse em memória, sem nenhum cansaço ou dor.

Somente o fluir, fluindo, indo, no vai-e-vem das ondas. Ia deixando-se diluir, como num sono; ou no início de um sonho. E os olhos grudados no olhar sereno de Jennifer. “Hoje não vou poder trabalhar... até queria; mas, a chefia vai ter que esperar; preciso de férias, descansar.” Os olhos de Jennifer eram túneis cheios de luz. Verdes, como garrafas de espumantes; de sidra de ano novo. Sentia uma piedade, uma profunda cumplicidade; uma tristeza de sabe-se lá do quê. Seria por Jennifer? Lentamente, foi mergulhando naqueles olhos acolhedores; calmos, brilhantes e,

uma preguiça indizível foi tomando conta de sua vontade e tudo, aos poucos, foi resplandecendo, até restar apenas a cor branca, que sequer é cor.

José Carlos Silva Batalhafam,é escritor, poeta e memorialista.

Funcionário público lotado na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo é autor de: “Verdades & Mentiras”-Poesia- 1987; “Eternos Dialogares”-Poesia- 1990; “Desordem”-Poesia- 1992; “Trilogia das Palavras”-Poesia- 2007. Tem participação em diversas coletâneas poéticas e publicações em jornais e revistas no Brasil e exterior. Há anos escreve contos, porém, apenas em 2010, iniciou publicação em antologias.

Contato: batalhafam@ig.com.br