Traumas reunidos
Corroendo meus ideais mais nobres (poucos, confesso), tenho sofrido ao longo da vida uma série de frustrações. Jamais consegui, por exemplo, o ronco troado que o Maurício Tucano extraía da sua mão em concha quando comprimida debaixo do sovaco. Com que admirável desenvoltura ele trocava de mão, esquerda, direita e vice-versa, como que regendo uma escala de sons profundos e graves, com os devidos bemóis e sustenidos.
Quando vejo atletas lançarem discos, martelos ou executarem prodigiosos saltos com vara, não me impressionam tanto quanto o Marcelo Paiva, que lançava (oh! Inveja!) pelo vão dos dentes da frente, e a cinco metros e trinta e dois centímetros, um esguicho denso de saliva, elaborado com a ajuda da língua e regurgitado sei lá eu de que profundezas. Pudesse eu encontrar um dentista que me abrisse uma fresta entre meus dentes, bem que tentaria, mesmo sabendo que me falta total pressão na boca. Frustração!
Fiquei muito feliz quando Ana Rita me ofereceu um DVD do Pavarotti, cujo agudo a gente não alcança nem em sonho. Tendo revisto as imagens com freqüência e me emociono cada vez. Tenho comigo um trauma sonoro também. O meu desgosto se deve ao fato de jamais ter conseguido tirar aquele zunido metálico do assobio com os dedos na boca. Há séculos tento nas idas ao Morumbi ou no sítio para chamar o Fidalgo, me exercito com os dedos médios, indicador, dedão e mindinho, com o fura-bolo em arco e dobrando a língua. Qual o quê! No máximo um soprozinho chocho, um suspiro exausto de agonizante. E ainda tenho que aturar o ar de deboche que ela assume quando me vê exercitando.
Outra coisa que não chega a ser frustração, mas tem um certo laivo de desgosto é o nome próprio que meus pais me deram. Se pudesse escolher me chamaria Lazo. Todo Lazo é bom, paciencioso, conta causos enquanto pita um cigarrinho de “paia de mio”. Tem uns que até colocam os óculos, dando tempo para que o tempo passe. Já o meu nome é forte, carregado de mística, supõe mensagens psicografadas, doloridas, rubras do sangue da cruz. Fosse Lazo...
Eu, que estudei tanto para me familiarizar com as letras, com a estética e detalhes, jamais consegui apontar um lápis como o Rômulo Costa Lima, nem fazer uma pipa de tiras de bambu, papel manteiga e cola de farinha como o Orides da selaria do seu Gino. Orides (ah! Inveja!) era o Santos Dumont do pedaço, o rei dos ares. Minhas pobres pipas, ao ganhar o vento, desembestavam céu abaixo pinoteando, esborrachando-se no quintal da dona Magalona. Fracasso e perdas totais...inclusive morais. Não é pra traumatizar?
Ainda reflito e me pergunto: estudando música e impostação de voz com madame Graziela de Salerno, moldando graves, sustentando agudos, por que motivo jamais consegui emitir, nem que fosse assemelhado, o ribombo dos arrotos do Sabino? Quando a classe no maior silêncio, de se ouvir as meninas chilreando no andar de baixo, jorrava das entranhas daquele filho da mãe o estampido medonho, que enfurecia o frade professor que o mandava para o frade diretor. Eu sentia a dor da incapacidade, o Sabino entrava triunfalmente no gabinete com as orelhas nas mãos do frei Rui Portugal e as meninas do andar de baixo suspiravam e no recreio disputavam um lugarzinho ao lado dele. Até hoje não aprendi a arrotar, mesmo tomando coca-cola ou exercitando o músculo peitoral. O Sabino, durante um arroto mais longo conseguia pronunciar a palavra “arrooobaaa” – que inveja santo Cristo!
Ela acaba de bisbilhotar sobre meus ombros o que estou escrevendo e porque diz me amar, aconselha-me: “por que você não para de escrever e faz alguma coisa da qual tenha noção?”
Sobrevivendo à bordoada desligo o notebook e vou pro jardim ligar a irrigação.
Corroendo meus ideais mais nobres (poucos, confesso), tenho sofrido ao longo da vida uma série de frustrações. Jamais consegui, por exemplo, o ronco troado que o Maurício Tucano extraía da sua mão em concha quando comprimida debaixo do sovaco. Com que admirável desenvoltura ele trocava de mão, esquerda, direita e vice-versa, como que regendo uma escala de sons profundos e graves, com os devidos bemóis e sustenidos.
Quando vejo atletas lançarem discos, martelos ou executarem prodigiosos saltos com vara, não me impressionam tanto quanto o Marcelo Paiva, que lançava (oh! Inveja!) pelo vão dos dentes da frente, e a cinco metros e trinta e dois centímetros, um esguicho denso de saliva, elaborado com a ajuda da língua e regurgitado sei lá eu de que profundezas. Pudesse eu encontrar um dentista que me abrisse uma fresta entre meus dentes, bem que tentaria, mesmo sabendo que me falta total pressão na boca. Frustração!
Fiquei muito feliz quando Ana Rita me ofereceu um DVD do Pavarotti, cujo agudo a gente não alcança nem em sonho. Tendo revisto as imagens com freqüência e me emociono cada vez. Tenho comigo um trauma sonoro também. O meu desgosto se deve ao fato de jamais ter conseguido tirar aquele zunido metálico do assobio com os dedos na boca. Há séculos tento nas idas ao Morumbi ou no sítio para chamar o Fidalgo, me exercito com os dedos médios, indicador, dedão e mindinho, com o fura-bolo em arco e dobrando a língua. Qual o quê! No máximo um soprozinho chocho, um suspiro exausto de agonizante. E ainda tenho que aturar o ar de deboche que ela assume quando me vê exercitando.
Outra coisa que não chega a ser frustração, mas tem um certo laivo de desgosto é o nome próprio que meus pais me deram. Se pudesse escolher me chamaria Lazo. Todo Lazo é bom, paciencioso, conta causos enquanto pita um cigarrinho de “paia de mio”. Tem uns que até colocam os óculos, dando tempo para que o tempo passe. Já o meu nome é forte, carregado de mística, supõe mensagens psicografadas, doloridas, rubras do sangue da cruz. Fosse Lazo...
Eu, que estudei tanto para me familiarizar com as letras, com a estética e detalhes, jamais consegui apontar um lápis como o Rômulo Costa Lima, nem fazer uma pipa de tiras de bambu, papel manteiga e cola de farinha como o Orides da selaria do seu Gino. Orides (ah! Inveja!) era o Santos Dumont do pedaço, o rei dos ares. Minhas pobres pipas, ao ganhar o vento, desembestavam céu abaixo pinoteando, esborrachando-se no quintal da dona Magalona. Fracasso e perdas totais...inclusive morais. Não é pra traumatizar?
Ainda reflito e me pergunto: estudando música e impostação de voz com madame Graziela de Salerno, moldando graves, sustentando agudos, por que motivo jamais consegui emitir, nem que fosse assemelhado, o ribombo dos arrotos do Sabino? Quando a classe no maior silêncio, de se ouvir as meninas chilreando no andar de baixo, jorrava das entranhas daquele filho da mãe o estampido medonho, que enfurecia o frade professor que o mandava para o frade diretor. Eu sentia a dor da incapacidade, o Sabino entrava triunfalmente no gabinete com as orelhas nas mãos do frei Rui Portugal e as meninas do andar de baixo suspiravam e no recreio disputavam um lugarzinho ao lado dele. Até hoje não aprendi a arrotar, mesmo tomando coca-cola ou exercitando o músculo peitoral. O Sabino, durante um arroto mais longo conseguia pronunciar a palavra “arrooobaaa” – que inveja santo Cristo!
Ela acaba de bisbilhotar sobre meus ombros o que estou escrevendo e porque diz me amar, aconselha-me: “por que você não para de escrever e faz alguma coisa da qual tenha noção?”
Sobrevivendo à bordoada desligo o notebook e vou pro jardim ligar a irrigação.