ATA DO CONSELHO

Ata de conselho pode ser leitura obrigatória para os que nele tiverem voz. Desaconselhável para os demais, se entretenimento é o que cada um busca lendo, alheios no silêncio que precede as palavras. Não seria o caso então, senhores, contar o ocorrido nesse conselho, idêntico tanto na forma como no conteúdo aos demais já registrados à exaustão, bem documentado no relato a que o título faz referência , se não viesse à público o teor dramático das conversações ali penhoradas. Obra do acaso que fez comparecer na sala de reuniões da escola, a mãe de um aluno interessada na situação de aprendizagem do filho. Chegou cedo e foi confundida por outra, uma professora recém contratada que assumiria o cargo hoje ou amanhã - hoje temos a mãe e amanhã a mestra. a mãe é filha de maria na congregação dos filhos de maria, a outra é especialista. Do filho importa sabermos, já que não está presente, o diagnóstico atestado por oftalmologistas renomados, de uma disfunção óptica que o impossibilita distinguir cores “Vejo branco, preto e cinzas”. Quando a nova professora assumir seu cargo, cadeira ou cátedra para sermos menos vulgar, deixada nesse desaterro para que o cálculo do prejuízo faça diferença, a outra, literalmente transfigurada, terá feito notícia do conjunto de adjetivos com os quais seu filho será descrito e logo tabela e gráficos publicarão o escândalo em primeiras páginas, nos telejornais e na internet. Contudo, após intervalo de uma semana aos depoimentos, depoimentos porque todos foram ouvidos, a demissão coletiva seria veredicto inédito mesmo para a pasta do governo, o ministério se pronunciará “Justa causa”, vai ainda declarar a seu tempo, o porta voz do governo. Quanto aos professores implicados no caso, a lembrança da falsa professora virá suscitar diálogos inócuos pelo atraso. Objetividade e clareza, objetividade e clareza, vai repetindo, enquanto transcreve o dito e feito em escrito esse funcionário eficiente que teve a presença de espírito de nada relatar além da veracidade dos fatos e, assim, repetimos, segue a ata desse conselho atropelando regras e gênero a ponto de quase serem omitidos dia, mês e ano do ocorrido, treze, dezembro, dois mil e quatro, sempre há tempo de emendar. Só não é possível ordenar a chegada dos os professores, o momento em que um por um disseram “Estou para o conselho”, pois que repetir a oração consoante o número de profissionais que aqui estiveram, acabaria por encobrir uma falta onde supúnhamos excesso, lengalenga ensinado naquela fábula antiga em que as ciências se reuniam em concílio para resolver grande dilema, trama simples reforçando no final, que é onde se reproduz a moral dos costumes, que a razão só ilumina as trevas mais inesperadas quando elas, que têm por hábito ignorar a existência da irmã mais velha, a consideram. E aí estão a ciência popular e a mãe para ouvir. Em seus postos o diretor e a coordenadora pedagógica sentados à mesa maior, ele responsável pela direção de quem não a tem e essa de fazer, como queria paulo freire, o trânsito fluir. É preciso descrever o ambiente, uma vez que o cabeçalho fora compilado e os protagonistas da cena apresentados. À primeira vista, que é a da mãe do aluno que não enxerga colorido, o que desperta nossa atenção é a disposição das carteiras que acompanham as paredes, viradas para o centro da sala. Seguem formando uma figura que, segundo os manuais distribuídos pelo governo de como organizar um conselho, deve ser um círculo. A ciência popular se manifesta apenas uma vez e quase podemos ouvi-la quando pergunta “Aquilo são instrumentos cirúrgicos?”. O que se vê na verdade são os instrumentos de trabalho dos professores dispostos igualmente sobre todas as mesas nessa ordem: borracha, lápis preto, canetas vermelha, azul, preta, régua de quinze centímetros e caixa de giz. Da porta de entrada, vemos as vidraças. Estão abertas e a brisa da manhã faz balançar o algodão alvejado das cortinas brancas. A ciência popular já não mais está para ouvir a voz do secretário que soa firme e rápida como a do comentarista de futebol, anuncia nomes e números, segue pausa menor que essa vírgula e, depois, aprovado, aprovado, aprovado, vez ou outra intercala um reprovado ao que se segue comentários, justificativas, lamúria, ladainha em descompasso no discurso aqui registrado. O conselho segue nesse ritmo, na mesma cadência, até o nome de nosso rebento ser a bola da vez, por assim dizer. Então, o chão se abre sob os pés da filha de maria e uma dor lancinante aperta suas entranhas, à boca vem o vômito que não lhe escapa como também não escapa aos sentidos a sentença final: “ Reprovado”. Calada, a mãe ouve a voz do conselho, “Homologado”. O conselho homologa, o conselho homologa, o conselho homologa, o conselho. o que ainda anima o coro é a insólita certeza, e com ela a paz ao espírito, de terem chegado ao consenso a que deram o infeliz nome de mesmalinguagem, triste figura, moinho e vento. É o conselho da escola reunido como pode, segundo as normas vigentes do ministério. À essa altura chega o texto dessa ata a bom termo e, não depois de subscrevermos nosso nome no devido lugar para que se saiba que todos estamos envolvidos, ouvimos da mãe que enfim se pronuncia, em defesa da prole, para cada um de nós presentes à incômoda leitura “A puta sou eu”.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 04/10/2011
Reeditado em 14/04/2018
Código do texto: T3256720
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