CONTRA TENOR

Primeiro sinal. Teatro lotado. Os músicos da orquestra se posicionam no palco, afinando os instrumentos. No camarim, Henrique aquece a voz, ansioso por sua estreia como solista. Nem acredita que, aos vinte e cinco anos, irá realizar seu sonho.

Desde pequeno, destacara-se no coro da Igreja, alcançando tons agudos que ninguém mais conseguia. Os fiéis diziam que até os anjos paravam para escutá-lo. Com o tempo, o que se considerava divino passou a incomodá-lo. Veio a puberdade, e sua voz não engrossara. Ao conversar, seu timbre soava agradável. Mas quando cantava, porém, parecia uma menina e isso o envergonhava.

Henrique, então, começou a se esquivar das missas, a faltar aos ensaios, inventando mil desculpas. Temia que os amigos caçoassem dele. Tinha medo que pensassem que ele era "bicha". Pior ainda, receava que, se desenvolvesse a voz feminina, ele próprio se tornaria gay. Tentou esquecer a paixão pela música. Mas, sem ela, até mesmo o entusiasmo nos jogos de futebol era efêmero.

Segundo sinal. Bebe meio copo de água mineral. Termina a leve maquiagem que a importância do evento exige. Um blush acobreado realça o charme másculo das maçãs de seu rosto. Um gloss pêssego umedece os lábios carnudos, deixando-os mais sensuais. Henrique respira fundo. Gosta da imagem que vê no espelho.

O jovem tenor sai do camarim e percorre o corredor do teatro. Lembra-se dos passeios com o avô que viera morar em sua casa após ficar viúvo. Sem muito equilíbrio, ele evitava andar sozinho. E Henrique o acompanhava, depois das aulas, pelas ruas tranquilas da Lapa. Conversas inesquecíveis, histórias da época em que era bombeiro. Mais que um avô, ele se tornara um grande amigo e o incentivava a continuar com a música.

– Medo? Medo de quê? De ser diferente? Pois é justamente com essa diferença que você vai poder se destacar, rapaz...

As dúvidas sobre sua sexualidade não mais existiam. Os desejos pelas garotas, a descoberta do amor por Maria Rita...

Que importância teria o que os outros pensassem dele?

E Henrique retornou ao canto. Decidiu aperfeiçoar seu talento.

Uma outra questão, porém, começou a inquietá-lo:

Como custear os estudos se sua família era tão pobre?

Terceiro sinal. Chega o grande momento. Somente quatro passos afastam Henrique do palco. Ele sente moleza nas pernas. As mãos estão frias. O maestro, que irá entrar primeiro, deseja-lhe boa sorte.

E isso, realmente, Henrique sempre teve.

Sorte por ter uma família que se sacrificou para ajudá-lo. Horas e mais horas de um trabalho extenuante que só por um firme objetivo foi possível suportar.

Sorte por conseguir uma bolsa de estudos.

Sorte ao vencer um concurso nacional.

– .Sorte e talento, dizia sua mãe.

– ... e determinação, completava o avô.

Ah! Como Henrique queria que seu avô estivesse com ele nesse momento. Acostumara-se com seu apoio e incentivo. Mas, na semana anterior, ele sofrera um infarto e precisou ser internado. Uma pena não poder compartilhar a vitória...

O devaneio se interrompe quando o apresentador anuncia o maestro e, em seguida, o seu nome.

Um orgulho preenche seu coração que bate cada vez mais forte. Henrique entra no palco e olha para a plateia. Sabe que pessoas queridas estão presentes em meio a tantos rostos desconhecidos. E ele cantará para todos, como muitas vezes sonhara.

Na primeira fila, reservada para a família, vê sua mãe, sua noiva e suas duas irmãs. Tenta encontrar o avô. Quem sabe ele não sairia do hospital para lhe fazer uma surpresa?

Mas, não... O lugar está vazio...

Com os primeiros acordes da orquestra, Henrique mergulha num mundo mágico. Nada mais lhe importa, a não ser a música. Sua voz melodiosa inebria. A afinação é perfeita. Todos se maravilham com seu timbre peculiar, sua interpretação e sensibilidade.

Ao entoar a última nota, a plateia prende a respiração.

Por um segundo, o silêncio... Depois, aplausos... muitos aplausos...

Henrique abre um sorriso e, emocionado, contempla o magnífico teatro. Não quer perder nenhum detalhe. As pessoas de pé, os camarotes suntuosos, o brilho das luzes... Pensa no avô, com gratidão. Sente sua presença e até o cheiro de sua colônia parece que se impregna no ar.

Num hospital público, o paciente do leito 603 aplaude com entusiasmo. Lágrimas escorrem pelo rosto. Os doentes do mesmo quarto acordam assustados e começam a balbuciar. A enfermeira de plantão logo chega. E sorri, como se soubesse o que está acontecendo.

Aos aplausos, unem-se outros sons da vida cotidiana. Mas nada se compara ao afetuoso canto de um sonhador que aquele velho coração, na ilusória distância, conseguiu escutar.

Marcia Etelli Coelho
Enviado por Marcia Etelli Coelho em 03/10/2011
Código do texto: T3255510
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