Os Meninos de Blue Jeans
Depois que recebeu a ligação, ficou empolgado. Foram meses de planejamento e semanas de angustiosa espera. Finalmente, chegara o dia previsto. “Tá tudo pronto pra hoje, já podemos fazer a entrega”- foi o que lhe dissera André ao telefone. “Então vou me encontrar com vocês...” - foi o que respondera.
“Não precisa, tem gente suficiente...” “Mas vou assim mesmo, quero conferir tudo de perto.”
Desligou o aparelho; suspirou fundo e sentiu o batimento cardíaco aumentar no peito; misturando empolgação e nervosismo. No relógio: 21: 05’. Se tudo corresse bem, teria cumprido a missão à que tinha se proposto e o Ano Novo que se aproximava começaria, realmente, novo para todos.
Não era o único responsável pelo que ia acontecer; mas, queria acompanhar toda a ação; ver de perto. Recebera a incumbência, e pretendia executá-la sem falhas. Falhar, era pôr a cabeça a prêmio, e não estava disposto a correr esse risco.
Houvera um tempo em que, sim era sim; e não era não e, ponto; “política” se escrevia com “P” maiúsculo e as visões de mundo, bem definidas, traduziam-se em ideologias. Ele fazia questão de cumprir a palavra; era sim, sim, e não, não; mas não via sentido algum em ideologias. Sem o saber, e distorcendo os velhos anarquistas, acreditava que o Estado é um monstrengo inútil. “A sociedade deve se autoregular; os muros ideológicos, econômicos e culturais caíram há muito tempo; a Internet, apesar do lixo inevitável, é o aeroporto mais otimizado do mundo, e o próprio mundo, um modem; tudo é instantâneo e globalizado; tudo é mercado; a genética e outras ciências, já anunciaram: não há povos, nações, raças, apenas consumidores.”
Acreditava, sinceramente, que esquerda e direita interpenetravam-se, e que mocinho e bandido, sempre, atiram para o mesmo lado. “Quem puder que se esquive, ou melhor dizendo: tudo é business, money, cifrão; quem puder que ganhe mais.” “Política é a arte da guerra por outros meios, e as duas juntas, ou separadas,geram grandes negócios” - era o que dizia, repetindo e remodelando a frase dos antigos marxistas; dos mercantilistas de plantão ou de quem quer que seja.
Terminou o whisky e foi para o banho. Não teria muito tempo. Por sorte, sem muito trabalho de convencimento, despachara esposa e filhos para o litoral, sob a promessa de passar as festas de Ano Novo com eles. Não os queria por perto e, assim, teria uma boa desculpa para se ausentar da cidade depois do que estava por fazer acontecer.
Terminado o banho, serviu-se de mais uma dose e foi trocar-se.
Na dúvida do que usar, optou por roupas informais, do dia-a-dia. Vestiu o velho e descontraído jeans. Apesar de tradicionalmente ser celebrada à meia noite, há anos, as paróquias vinham realizando a Missa do Galo mais cedo. A medida visava atrair maior número de fiéis e compatibilizar o horário da missa com o da ceia feita pelas famílias, à meia noite.
Ligou, mais uma vez, para a esposa, e saiu. Os ponteiros marcavam 22:40’. Chegaria um pouco depois de iniciada a missa; mas, a tempo de acompanhar de perto a ação dos companheiros.
2- A MISSA DO GALO
Ia caminhando apressado sob a garoa fina que, desde a manhã, insistia em cair criando poças d’água; transformando o chão numa gosma escorregadia. O corpo magro ia curvado; cenho franzido, como se os pingos pesassem sobre a cabeça.
A igreja não era distante. Sobre os telhados, pairavam murmúrios; choro de crianças; tilintar de copos em brindes, e o espocar dos primeiros fogos de artifícios. Apressado, subiu a escadaria. Fez o sinal da cruz desajeitado e entrou; atrasado.
— A graça do nosso senhor Jesus Cristo, o amor do Pai, e a comunhão do Espírito Santo, estejam convosco! -disse o oficiante.
— Bendito seja Deus que nos uniu no amor de Cristo! -responderam as vozes em coro.
Ergueu-se nas pontas dos pés e olhou por sobre as cabeças atentas à missa.
À esquerda não viu quem procurava. Correu os olhos em outras direções.
— Salve, ó Mãe de Deus; vós destes à luz o Rei que governa o céu e a terra pelos séculos eternos!
Entre as muitas cabeças, identificou uma, de cabelos negros e cacheados, no canto, na sétima fila, à direita. Encaminhou-se pelo corredor lateral, enquanto as vozes se alternavam e se atropelavam na confissão. Chegara depois do previsto, mas a tempo de encontrar os amigos em ação.
— Confesso a Deus todo poderoso, e à vós irmãos, que pequei muitas vezes por pensamentos; palavras, atos e omissões...
Aproximou-se e tomou assento ao lado.
— E aí, André... como é que é... onde ele está aqui?
— Na segunda fila; na direção da velha de casaco azul, à direita.
— Ah... sim; estou vendo!
— Ele está só?
— Não... a esposa, a filha e dois assessores... mas; com família não se mexe, é sagrada; uma questão de princípio, ética!
— Onde estão os assessores?
— Um, de terno bege, logo atrás dele. O outro, perdi de vista, deve estar na fileira oposta; são dois mela-cuecas, não valem a pena; se bater o pé, eles correm!
— Glória à Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados! Senhor Deus, Rei dos céus, Deus Pai todo poderoso, nós vos...
— E as chances?
— Boas; hoje, vai ou racha!
— Estamos em quantos?
— Seis. Eu, você, Paulo, Marcos, Jonas e o Vidal!
— Esse filho da puta vai ver o que é bom;... vai “embromar” a puta-que-o-pariu!
— Ele “já era”, a menos que tenha muita sorte!
— Quem fará o confronto?
— Não haverá confronto... tá tudo certo pra hora da comunhão!
— Como assim?
— Vamos usar a terceira alternativa!
— Quem?!
— O Marcos; lá à direita do oficiante, no altar; vai ajudar na distribuição das hóstias!
— Vamos torcer pra haver coincidência; se não houver..., vai ser a maior “furada”!
— Fica frio... o Marcos está preparado pra isso, estamos no final dessa loucura!
— Do começo! É agora que a coisa vai começar!
— Claro!
— Creio em Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra; em Jesus Cristo, seu único filho, nosso senhor...
— Vou lá pra frente; vou comungar!
— Eu fico por aqui!
3- RITOS FINAIS
— O Senhor esteja convosco! - desejou o oficiante.
— Ele está no meio de nós! - afirmaram as vozes em coro.
— Abençoe-nos Deus todo-poderoso; Pai, Filho e Espírito Santo!
— Amém!
— Vamos em paz, e o Senhor nos acompanhe!
4- A MANCHETE:
MORREU JOÃO DIAS
“Acometido por mal súbito e não resistindo ao colapso cardíaco, faleceu nesta madrugada de domingo -25 de dezembro de 2011, na Santa Casa de Misericórdia, o prefeito João Antonio Dias Salgado. Após sair da Paróquia Nossa Senhora dos Anjos, onde fora, acompanhado pela esposa e filha, assistir a tradicional missa do galo, João Antonio Dias, o popular “Joãozinho de Barleta”, foi surpreendido por fortes dores no peito e abdômen durante Ceia de Natal realizada em família. Encaminhado às pressas à Santa Casa, o prefeito foi atendido prontamente pelo Dr. Alberto Nomura, e sua prestimosa equipe, que empregaram todas as técnicas de reanimação; mas não puderam salvá-lo. Segundo a equipe médica, o prefeito chegou, ainda, com vida ao hospital; porém, para consternação geral, deu-se o óbito às 02:15’ da madrugada. A fim de não causar maior sofrimento à família, dispensou-se a necropsia, e o próprio Dr. Alberto Nomura, que acompanhava a saúde do prefeito há mais de doze anos, lavrou o atestado de óbito. Em nota divulgada pela Câmara Municipal; os nove vereadores, considerando a ausência do vice-prefeito Guilherme Assunção, que se encontra em visita a parentes na Argentina, definiram-se pelo empossamento interino de Paulo Santiago Dantas, o Paulinho da Farmácia, presidente desta egrégia Assembléia Municipal. É sabido da chegada de parentes, amigos e correligionários, que acompanharão o féretro...
José Carlos Silva Batalhafam- é paulista de Jales-SP; funcionário da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e publicou: “Verdades & Mentiras” -poesias- 1987; “Eternos Dialogares” - poesias-1990; “Desordem” -poesias- 1992 e “Trilogia das Palavras” poesias- 2007.Tem participações em Antologias no Brasil e exterior. Há anos escreve contos; porém, somente em 2010 iniciou a publicação em Antologias.
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