A CRIANÇA INVISÍVEL
Mateus num momento rápido pegou uma velha bola que havia encontrado na estrada velha e jogou para seu irmãozinho. Não deve ter durado nem cinco minutos, mas o suficiente para seus ouvidos ainda desacostumados com xingamentos, escutarem um grande grito do senhor Olavo, dono da fazenda.
Aquele dia estava tão quente, o sol estava tão forte que ele, de sete anos não estava suportando ficar perto do forno que multiplicava incontáveis vezes os trinta e oito graus que fazia naquele lugar, perdido no meio do nada e encravado no meio daquele cerrado. Não era um lugar feio. Avista-se ao longe um horizonte plano que todos os dias traz um lindo por do sol. Não muito longe dali corria um riacho, pequeno, com umas pedras que parece que foram colocadas cuidadosamente pelas mãos de Deus, para tornar ali um lugar de agradável repouso e contemplação. Em nada Mateus desfrutava daquela natureza. Sua casinha ficava do outro lado da fazenda, juntamente com umas outras igualmente desprovidas de qualquer conforto. Na verdade não eram casas, era um acampamento sem água encanada e sem as condições de higiene mais básicas.
Seu pai era o Gonçalves. Saiu de Minas Gerais com mulher e cinco filhos. Trabalhava numa fazenda como caseiro e foi demitido porque a fazenda tradicional deixou de existir para dar lugar a um complexo industrial. Mateus é o do meio e nunca esteve acostumado a nenhum tipo de luxo. Eles vivem junto com outras oito famílias na fazenda “Águas Lindas”, onde existe um complexo de carvoarias. O menino é um, de vários. Passa o dia entre os fornos e carrega lenha. É um trabalho difícil demais para quem ainda não se desenvolveu fisicamente. Ele é baixo, magro, mais magro que o normal e tem uma pele amarelada. Está quase sempre com o rosto encoberto pelo preto pó do carvão que faz no menino uma maquiagem cruel e desumana. Seus cabelos lisos e cortados como os de um índio, deixam uma franja na testa daquele rostinho angelical que ostenta olhos negros profundos e penetrantes no infinito, sempre olhando para baixo, para não tropeçar em nenhuma pedra ou graveto naquele chão marcado por tantos passos descalços de pés apressados para terminar logo o dia. O sol parece fazer um percurso mais lento naquele lugar. Nasce muito cedo e fica um tempo infinito no alto do céu. A lua parece fazer apenas um rápido passeio pelo firmamento daquela fazenda, talvez porque ali ninguém para com o objetivo de ficar admirando-a. Logo um novo dia começa, sem tempo de os corpos suados do calor dos fornos repousarem e recuperarem as energias tantas, necessárias para mais uma lida.
O menino estava atrás de um forno e chorava. Suas lágrimas manchavam seu rosto todo marcado pelo pó de carvão e deixava sua face desfigurada tal como estava sua alma. Ele nunca tivera infância, nunca tivera tempo de brincar e correr pelas praças e ruas. Sua mãe já estava no céu havia quase quatro anos, quando seu último irmão nasceu. Faltava-lhe o colo e o carinho materno, embora seu pai fosse amoroso com ele.
O pai sofria dia e noite um tormento eterno por não poder dar aos filhos a tão sonhada escola, mesmo sabendo que o estudo é a única riqueza que ninguém pode roubar. As noites do pai eram longas e um martírio constante para tirar dali os três filhos e poder levá-los para a cidade. Esperava apenas equilibrar-se e livrar-se das dívidas contraídas ainda durante a doença e morte de Virgínia.
Ela lhe fazia muita falta. Sempre carinhosa e gentil, recebia o marido de braços abertos todos os dias e lhe cobria a face de beijos, juntamente com os pequenos. Era ela a mulher mais doce do mundo, com seus cabelos anelados, seu sorriso sempre otimista e os vestidos estampados, de tecido barato, mas delicadamente costurados por ela mesma. Alta, olhos castanhos, magra e rosto sereno, Virgínia dava amor incondicional aos filhos. Mateus, no entanto tivera muito pouco tempo para desfrutar desse que é o mais puro e belo dos amores.
Enquanto isso continua a derramar suas lágrimas inocentes de menino que não compreende as injustiças do mundo, mas que as experimenta da forma mais cruel possível: na própria pele. Lembra com saudade dos poucos dias que passou na escola e dos sonhos que havia revelado para a professora. Queria ser médico, sonho de todo menino pobre. Queria curar doenças e poder salvar vidas. O velho caderno ainda está com ele, guardado no fundo de uma gaveta. De vez em quando ele observa os desenhos, as letras poucos e as palavras de incentivo da professora, para ele ainda incompreensíveis.
Nas lágrimas do menino por detrás do forno, percebe-se um escoar dos sonhos pela pele já maltratada e pelos sons arrogantes ouvidos. Sente saudade imensa da mãe que o colocava no colo e cantava para ele dormir. Muito cedo, sua infância foi roubada e seu futuro está sendo surripiado por um homem que parece ser desprovido de um coração e de uma alma. Olavo é agressivo e quer o trabalho pronto. Ele paga um complemento ao pai pelo trabalho dos dois filhos, muito pouco, mas que faz uma diferença para o pobre homem a quem a vida negou oportunidades. O menor fica por perto brincando inocentemente e sem imaginar que tipo de futuro o aguarda. Mateus tem força pouca, vontade muita de ajudar o pai e saírem dali. O mais velho já com doze anos têm um olhar raivoso para o dono da fazenda. O pai, de tanto sofrer e chorar nas intermináveis noites de solidão parece ter ficado imune à vida.
Fiquei observando Mateus sair de trás do forno e continuar seu trabalho. De tempos em tempos olhava a bola com o irmãozinho a brincar inocentemente e só. Suas lágrimas haviam desaparecido, não chorava mais. Até mesmo o direito de expressar sua dor lhe era roubada. Passava ali o dia todo com a garganta travada num choro incontido e a queimar no sol sempre quente, que escureceram seus braços, rosto e pernas. Quando tirava sua camisa surrada, via-se o corpo branco e a pele ainda suave de criança contrastante com as partes sempre expostas ao sol. Não havia frio que aliviasse o calor interno de seu corpo e não havia noite que acalmava sua vontade de brincar e de ser uma criança normal. Mateus à noite, já na cama que divide com o irmãozinho dorme rapidamente. Não sonha. Não tem tempo e seu corpo não resiste ao cansaço do dia. Seu pai observa os meninos dormirem com lágrimas nos olhos, e apesar do seu cansaço, demora-se a dormir. Reza intermináveis Ave-Marias e pede à mãe do céu que cuide de seus filhos e os cubra com seu manto protetor, até se render ao inevitável desgaste do dia.
Mateus vive uma infância invisível num país de cegos, como eu. Longe daqui toda a sociedade que clama contra o trabalho de Mateus vários pelo país. Enquanto isso, o menino carrega sua lenha e seus sonhos neste chão batido, seco e cruel. Na cidade, Olavo prepara uma festa de aniversário para seu filho de dezoito anos, que entra na faculdade no próximo ano. A banda preferida do filho vai tocar na festa, que será num grande clube onde são sócios.