Vocês viram o tamanho do gol?
Bem na hora do atraso, quando eu estava prestes a sair de casa, não conseguia abrir a porta. Ao espiar pelo olho mágico, percebi que tinha alguém ali, segurando o trinco, me impedindo de sair. E o verme ria como um jumento. A porta dos fundos estava trancada. Eu quase nunca abria, quase nunca ia ao quintal, não sabia sequer onde estava a chave.
Fui até a janela, abri para sair, mas havia uma rede instalada de fora pra dentro. Se eu arriscasse, certamente prenderia os braços e morreria preso. Tentei as outras janelas, mas quando cheguei aos quartos vi que estas não mais existiam. Meu cachorro me observava sem nada entender . Pudera! Aquela cena era inédita em nossas vidas!
Liguei para a polícia e pedi socorro, mas o barulho das gargalhadas do cara da porta impediam-me de fazer o apelo. Quando a atendente da polícia entendeu minhas palavras gritadas, me passou o número do CVV. Telefonei para a Camila. Ela estava dormindo ainda, e acordou de mau humor. Quando contei a história, ela me tratou com indiferença e perguntou por que meu vizinho estava rindo daquele jeito. E nem vizinho eu tinha! Só eu morava naquela quadra.
O único jeito era arrombar a porta. Primeiro tentei no chute, mas não deu muito resultado. Arrebentar mesmo, só a ponta do dedão e minha havaiana azul esquerda, que ficou inutilizada.
Eu tinha que encontrar algo para golpear a porta. Achei a vassoura. A cada paulada, o meu cachorro latia, e muito alto. O som do latido encobria o som da risada do cara da porta. O latido do cachorro estava estranho. Eu caceteava a porta e o cachorro latia. A cada latido, uma gaguejada. O cachorro gaguejava! Logo as latidas se transformaram em gargalhadas. O cachorro rolava no chão, gargalhava, mijava e cagava, tudo junto. A risada do cachorro encobria a risada do cara da porta.
Gritei pro cara: 'me deixa sair, filho da puta!'. E ele ria, cada vez mais alto, não se cansava de rir. Mas a risada estava diferente, praticamente gutural. Olhei pelo olho mágico e o sujeito, careca, magro, apático, trajando robe azul, deu uma lambida na mão. Ele rangia os dentes. E ali, mais perto, percebi que a risada já não era mais risada. O cara estava latindo. Soltei a porta correndo, fiquei com medo de infecção.
Foi quando mudei de idéia. Liguei a TV no canal do futebol. Fui até a despensa e peguei o querosene. Quando o locutor expressou palavras de perigo na grande área, banhei o cachorro, que ria ainda, com o combustível. O perigo da grande área continuava, o locutor afobado, e eu atento à televisão com o fósforo na mão, já pronto. Aumentei o volume no último para abafar. Quando o locutor gritou 'gol' ateei fogo no cachorro.
O grito do locutor estava chegando ao fim, mas o cachorro urrava ainda. Não deu certo. Desliguei a TV enquanto o cachorro agonizava. O cara da porta berrava também. Dois minutos depois, o silêncio. Cuidadosamente fui à porta, olhei pela lente e não vi o homem que me atazanava. Ao abrir a porta, eu o vi jazendo ao chão, todo queimado. O rosto não existia mais. Transformara-se numa linguiça humana. O silêncio persistia. Aproveitei para fugir dali.
Quando finalmente estava livre, fui até a conveniência da esquina comprar uma garrafa de vermute. Deixei de lado o compromisso que tinha e resolvi passar a tarde fora de casa, no zoológico, dando pipoca aos macacos.