Olho gordo

Elas eram amigas, mas morriam de inveja uma da outra. Uma inveja febril, dolorosa e intensa, mas que elas sabiam disfarçar muito bem. (É que a maioria das pessoas não consegue perceber o mal no brilho do olhar).

Eram jovens, lindas e de um nível social elevadíssimo, muito acima do que os economistas costumam chamar de Classe A: um mundo à parte, cercado por muralhas, grades, guaritas e seguranças armados 24 horas.

Tinham quase a mesma idade. Eram casadas com dois irmãos gêmeos, jovens como elas, herdeiros do mesmo império: um enorme conglomerado de indústrias espalhadas pelo mundo todo. Era dinheiro que não acabava mais.

E a inveja...

Uma inveja que ardia por dentro, apesar dos sorrisos encantadores, que vinham sempre acompanhados de elogios, abraços e beijinhos: “Você está linda”, “Que cabelo!”, “Onde você comprou o vestido?”. Mas por dentro era pura brasa ardente: fogo azul, frio, queimando, espetando, como farpas incandescentes.

Elas procuravam sempre dar destaque aos detalhes que realçavam e valorizavam uma em detrimento da outra: um vestido, uma viagem, um cabelo, uma festa, uma façanha, e faziam questão de exibi-los com acinte, sobretudo onde a outra se encontrava, ou pelo menos fazer a informação chegar a ela da forma mais ostentosa possível.

E quando elas descobriram o Facebook?

Ah, o Facebook...

Como era bom se exibir, colecionar amigos, gente curtindo, comentando, e a outra assistindo a tudo, morta de inveja.

Quem utilizava o recurso como mero instrumento de apoio à vaidade, embora dissesse que o que sentia era simplesmente prazer em compartilhar com os amigos os momentos bons da vida, no fundo o que realmente lhe movia o espírito era um desejo ardente de causar inveja no outro, de se destacar, de aparecer.

Elas eram desse tipo, mas jogavam num nível muito mais alto que o dos simples mortais.

Enquanto nas zonas baixas da arraia-miúda pululavam viagens a Castelhanos, Rio das Ostras, Cabo Frio e Caldas Novas, na camada onde as duas navegavam, as fotos revelavam nada menos que restaurantes sofisticados em Paris, Praga, Genebra e Nova York; cruzeiros de luxo no Mar Mediterrâneo e no Caribe; cassinos em Las Vegas e Monte Carlo... E elas postavam as fotos como jogavam cartas numa partida de poker: “Cubra essa agora, vagabunda”. “Agora eu quero ver”. E as cartas eram lançadas na mesa: viagens, festas, jóias e também amigos importantes curtindo suas futilidades de luxo, como governadores, ministros, grandes empresários e artistas de renome: um puxa-saquismo de alto nível, requintado, sem erros de português. Bastava uma delas postar “Dudu (ou Lulu) me deu hoje um relógio cravejado de diamantes” para que um bando imenso de puxa-sacos curtisse a foto, alguns chegando até a comentá-la!

O interessante é que as duas curtiam as postagens uma da outra. Algumas vezes elas hesitavam, indecisas, os olhos faiscando de ódio, mas curtiam assim mesmo, para mostrar amizade. E quando já tinham uma carta guardada na manga, comentavam felizes as vantagens que a outra contava, mas sabendo que em breve o jogo viraria.

Até que um dia uma delas postou: “Estou grávida”. Para a outra, que nunca tinha pensado em ter filhos, foi quase o fim do mundo. O marido foi convencido naquela noite mesmo a engravidá-la, porque se para a outra estar grávida era uma vantagem, ela também tinha que engravidar, mesmo que no fundo não desejasse isso. Muito mais fácil seria destacar no Facebook as desvantagens de ter filhos, dizer a verdade: “Eu e meu marido não queremos ter filhos por isso e aquilo”. Mas não. Ela optou por engravidar também, com medo das pessoas acharem que ela afirmava não querer ter filhos porque não podia ter, por ser estéril.

Nunca, jamais ela poderia ser estéril!

Mas era.

Eles tentaram, tentaram, tentaram e nada. Consultaram um especialista renomado nos Estados Unidos e receberam o diagnóstico com lágrimas nos olhos: ambos eram estéreis. O marido não tinha nenhum espermatozóide aproveitável, e ela tinha o útero completamente atrofiado e seco.

Enquanto isso a outra postava as fotos de sua bela gravidez planejada, desejada, esperada. Cada etapa vivida com uma alegria inexprimível, o marido feliz, junto dela, o quartinho do bebê sendo montado aos poucos, com tudo do bom e do melhor, e a barriga crescendo, o corpo se transformando... E para ela nada mais importava, nem as fotos que a amiga colocava diariamente em seu álbum mostrando cenas dela e do marido escalando montanhas, saltando de paraquedas, exibindo corpos perfeitos – coisas que uma mulher grávida não poderia fazer, mas que, para ela, com um filho crescendo na barriga, plena de uma felicidade que só uma mãe pode sentir, não importava, não importava mesmo.

E aquela indiferença da futura mãe fazia com que a inveja doentia da outra ganhasse proporções terríveis. Brasas em chamas. Labaredas que ardiam e cresciam, tomando conta dela toda, saindo pelos olhos em faíscas que brilhavam com intensidade (mas que pouquíssimas pessoas conseguiam perceber).

No sétimo mês de gravidez as duas se encontraram numa festinha boba, na casa de um amigo. Estava lá um rapaz que não era conhecido de nenhum dos convidados, um professor particular de matemática que havia conseguido um verdadeiro milagre na escola com o filho do dono da casa.

Estava lá então esse rapaz, sentado sozinho no sofá, bebendo uma taça de vinho tinto, a cabeça vazia de pensamentos, completamente em paz consigo mesmo. Mas assim que a mulher grávida entrou no apartamento, ele sentiu uma energia pesada, cheia de ódio – vinda de onde? –, concentrando-se aos poucos no bebê que a jovem carregava orgulhosa e feliz na barriga.

Ele sentia essas coisas desde pequeno. E quando as sentia rezava. Rezava até passar. Tinha muita fé em Santa Teresa de Ávila. Mas aquilo... Aquilo era demais...

Ele então procurou a fonte da energia e levou um susto ao perceber um brilho estranho e forte nos olhos da mulher que, dentre todas as pessoas que estavam na festa, parecia ser a mais feliz com a chegada da futura mamãe. Ela sorria e dizia “Que linda!”, “Que barriga linda!”, mas seus olhos estavam em chamas e cresciam, cresciam... Ninguém via isso, só ele. E a felicidade da jovem mãe só fazia aumentar a força do mal que aos poucos envolvia a sua barriga.

Durante toda a festa, os olhos vivos de carne e sangue da invejosa poucas vezes se dirigiram à amiga. Mas seus olhos do espírito, gordos, em chamas, que só o jovem professor conseguia ver, atravessavam móveis e paredes e não se desgrudavam da bela barriga cheia de vida nova se fazendo, surgindo, crescendo.

Até que a mulher grávida não aguentou e caiu no chão, com fortes dores, gritando. Todos foram até ela para socorrê-la, inclusive a amiga, que demonstrava preocupação e queria ajudar, tragam isso, tragam aquilo, vai ficar tudo bem, querida. Mas isso na crosta visível, na encenação, porque o professor estava de olho nela e viu. Viu seus olhos crescerem quase do tamanho do próprio rosto, e aquela energia escura (ele viu!), tão densa que ele quase podia tocá-la e enrolá-la no braço, como um tecido grosso, molhado e frio.

Então ele disse, com as mãos na barriga da mulher caída: “Todos vocês, rezem comigo”. E de seus lábios saiu uma bela oração de Santa Teresa de Ávila. Rezou com muita fé, e foi seguido por todos, até pela invejosa, que aos poucos foi perdendo a força (seus olhos se encolhendo, voltando para as órbitas) e a dor na barriga da jovem grávida foi passando, passando, até desaparecer.