A CADEIRA DO TEMPO

Ainda tento ver lá fora. Não consigo mais já faz tempo. Percebo o brilho do sol, mas ele não chega mais até mim. Sinto em mim o calor do sol a queimar meu rosto nos anos em que eu vivia debaixo dele. E foram tantos.... Agora eu o vejo apenas pela janela, aqui nesta cama já há oito meses. A idade foi avançando e eu continuei a vida indiferente ao tempo e às preocupações do existir. Silvana é quem cuida de mim, que me alimenta, que me faz a higiene pessoal e que canta para eu dormir. Sim, ela canta. E canta maravilhosamente bem. Ela que me transporta na velha cadeira de rodas que um dia foi usada pela minha mãe para o quintal de nossa casa centenária. Do lado de fora a cadeira me transporta para tempos antigos, de minha infância e das brincadeiras inocentes tantas vezes neste grande quintal. Ultimamente pouco tenho ido até lá. As dores do corpo dificultam muito minhas visitas ao lado de fora.

Ontem estive lá. Choveu durante uma semana inteira e só ontem o sol deu o ar da graça. Fazia já um mês que não saía desta cama. Estava com saudade de ver o cenário de minha infância. A velha cadeira me levou a uma viagem fascinante. As últimas viagens tem sido espetaculares. Quando passo pelo corredor desta casa e se me abre a porta do quintal, sinto o vento fresco da manhã deslizar pelo meu enrugado rosto e transpassar meu corpo já deteriorado pela idade tanta. Meus olhos ainda possuem o brilho da juventude e enxergam perfeitamente tudo o que se mostra à minha frente.

Olho sempre primeiro em direção ao céu. O céu aqui de Santo Ambrósio do Rio Grande é o mais belo de todos. De um azul sem igual e sempre com poucas nuvens a movimentarem-se tal qual o balé de minha infância. Pássaros sempre cruzam os ares num ir e vir infinito. Olho para a casa. Como é linda! São mais de cento e vinte anos que está de pé. Foi construída pelo meu bisavô e abrigou toda a família por anos a fio. Possui dois andares. Na parte de baixo, uma varanda marca o meio da construção e ao lado as janelas de madeira. A porta de entrada é única, grande, de madeira pesada e centralizada ao fim da varanda de acesso à casa. São quatro janelas de cada lado. O andar de cima, um grande espaço de doze janelas e duas sacadas localizadas nos quartos de cada canto. Um conjunto de telhados compõe o cenário. Faz tempo que não passa por uma reforma. A última foi Anselmo, meu finado marido que fez. Ainda conserva a pintura amarelo claro, já desbotada e gasta, em forte contraste com as janelas azuis escuras. É linda!

O jardim ainda está maravilhoso. Palmeiras antigas enfeitam o espaço externo da casa, junto com árvores plantadas pelo meu pai para nos oferecer diversos frutos. Silvana sempre consegue um tempo para cuidar dele. Neste cenário bucólico, volto às minhas brincadeiras de infância e pareço ver a imagem dos meus irmãos correndo para todos os lados. Vejo mamãe gritando conosco e papai chegando sempre sorridente do trabalho. Eles não estão mais aqui. Eu vivi e ainda vivo, no auge dos meus noventa e sete anos, condenada à saudade de todos. Nesta velha casa ninguém mais quis morar. A sedução da cidade grande falou mais alto e a falta de oportunidades aqui na nossa pequena cidade empurrou nossos amados para a distância necessária. Ficou o imenso casarão, grande para muitos habitantes, agora um mundo para Silvana e eu. Aqui vêm de vez em quando, nas férias ou nas épocas de festa.

Meus filhos pouco me visitam. Cada um foi cuidar de si. Somente Celina, que já está também com seus setenta e oito e mais doente do que eu é que vem aqui quase sempre. É a única que mora em Santo Ambrósio. Ficou viúva há pouco tempo e os filhos também a deixaram, restando apenas o mais moço que carinhosamente cuida dela. Ela segue seu caminho e eles me visitam nas sextas-feiras. É o dia da minha alegria. No domingo, também tenho a alegria revigorada, pois Jesus vem me ver e me alimentar. Ele chega cedinho, depois da missa das sete, trazido pela Ana, ministra da Eucaristia. Ela vem contente, reza comigo, me traz alento e paz até que chegue minha hora.

Na velha cadeira fico sempre observando tudo o que acontece em volta desse lugar. Não tenho pressa mais. Hoje vejo a bobagem de correr atrás de tudo desesperadamente, de estar sempre com a comida pronta no horário, de correr para deixar tudo limpinho. Hoje não tenho mais pressa alguma. Nada mais tem importância. Vejo a vida passar bem devagar, como a carroça do senhor Homero, diariamente entregando leite “in natura” com sua buzina chamando a atenção da freguesia. Ou percebo o tempo tão lento, tão discretamente seguindo seu curso milimétrico do relógio da velha matriz, que posso ver aqui do quintal. Vejo apenas a torre direita e uma parte da nave. A igreja fica invisível por causa de algumas construções adiantadas e que não mais me permitem ver o templo de mais de duzentos anos ali erguido, com seus sinos importados da Alemanha a dar os avisos todos para as pessoas. A vida simplesmente segue seu destino, enquanto que as pessoas correm tentando evitar o tempo implacável para todos.

Silvana chega depois de uma hora de quintal e me leva novamente para a cama. O corredor da casa, antes lugar de corridas e de gritos eufóricos da meninada em direção à cozinha, agora me soa como um caminho de calvário. Tal como Cristo para o monte mortal, sigo na cadeira para meu leito de dor. A janela apesar de ser baixa, não me permite ver lá fora. Uma árvore que faz sombra e deixa o lugar mais agradável, também me retira a visão do céu.

Uma mulher na cama, inválida para as coisas práticas da vida não pode pretender muito. Os olhos ainda produzem as poucas lágrimas que permito deixarem rolar para evitar que eu fale daquilo que sinto. Não quero incomodar as pessoas e deixo que pensem que estou melhor, que estou mais animada, que estou sempre otimista. Assim é que recebo as poucas visitas que me vêm ver e aos meus familiares, que na verdade me visitam por questão de satisfação social. Sinto que não se importam de verdade. Só Thiago, meu neto que mora na cidade me chama carinhosamente de vovó e me toma a mão sempre fria, aquecendo-a com seu calor.

No mais sinto minhas dores em silêncio, de mulher idosa, que não consegue mais render fruto algum. Silvana diz me amar muito e me acaricia. Eu sim, a amo! Ela não é da família, não tem laço parental com nenhum de nós. Mora aqui comigo desde que Anselmo partiu. Ela é remunerada para estar aqui. Tem pai e mãe, mas não casou nem tem filhos. Tem cinquenta anos e está sempre sorrindo. Nunca levantou a voz ou perdeu a paciência comigo. É um anjo caído do céu. Mas nem a ela relato meu sofrimento. Ele também é visível a seus olhos.

Deitada na cama aguardo o meu próximo passeio na cadeira do tempo, que me transporta por entre as paredes da casa e pelo quintal das lembranças. Espero também pela minha partida. Sem rancor e sem remorsos. Vivi muito, amei bastante e tive uma família linda, apesar de distante. Rezo dia e noite por eles, é apenas o que posso fazer. Sigo meu caminho, minha vida de mulher que pensa e observa que apesar da idade, descobre a importância de uma bela vida, mas que silencia no seu leito de dor, que brevemente o será de morte. Mas uma morte querida, um ir para outro mundo, já sem as dores do corpo e da alma. Uma viagem, não mais na cadeira, mas numa nuvem, abraçada pelos anjos e ouvindo o suave canto celestial. Esta velha Gesuína sentirá saudade de muitas coisas, das lembranças, dos filhos e até da cadeira. Nada comparável à saudade que sentirei do canto de Silvana.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 26/09/2011
Reeditado em 26/09/2011
Código do texto: T3241843
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