Curvas

Saindo com uma ressaca monstra de mais um apartamento que nunca mais voltarei a ver; outro rosto de porteiro a ser desfragmentado na névoa do esquecimento.

Por que a glória não pode ser tão boa quando vem o dia seguinte, com sua costumeira sobriedade e enfado?

O tempo fechou de repente, depois de umas ventanias mornas que foram se tornando frias, enquanto eu caminho por alamedas silenciosas, procuro folhas mortas pra pisar, chuto pedras e pirraço rottweilers assassinos; devastado por uma derrota que espicaça cada terminal nervoso do meu corpo que, caralho, só por Deus, mesmo...

“Qual é o meu problema?”, indaguei a um gato que de cima de uma balaustrada me ignorou de maneira peremptória.

É triste perceber que cada passo que dou me distancio um pouco mais de onde eu deveria estar.

“Meu lugar era lá, porra”, bradei ao vento que fustigava meus cambitos desnudos. “E não aqui fora”, continuei choramingando, “a caminho de uma casa que odeio, num bairro que não suporto, com gente que não me apraz”.

Parei no ponto de ônibus.

Dei sinal.

Subi.

De lá da frente veio a voz de uma velha falando de alguém que estava no fundo do ônibus feito criança, ajoelhado num dos últimos bancos, e que acenava para uma moça que, com os cotovelos arrimados na sacada de um prédio próximo, com um cigarro entre os dedos, devolvia o aceno com o rímel escorrendo pelas bochechas.

Talvez fosse eu, esse “alguém”, porém, um alguém que tinha acabado de deixar de ser alguém, tornando-se um “ninguém” – tornando-se um Zé-Ninguém.

“Basta apenas uma curva para tudo deixar de ser”, ainda pude ouvir a voz da idosa dizer... Um momento amargo, propício e poético para se ouvir o que se eu soubesse dez minutos atrás teria feito com que tudo fosse diferente.

"Um momento amargo para se dizer Adeus", pensei em inglês, enquanto o ônibus fazia uma curva...

24/09/2011 – 22h15m / The Draft - Impossible

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 24/09/2011
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