ENCONTRO INESQUECÍVEL

UM ENCONTRO INESQUECÍVEL EM:

São João da Bela Vista, no dia de São Pedro com súplicas a Sto. Antônio.

Há situações que nos deixam incontroláveis. Entre elas, por exemplo, os tais encontros inesquecíveis. Marcam porque não estamos esperando – e, muitas vezes, jamais esquecemos.

Quando se passa o fato (o encontro) é que voltamos à realidade. Tudo, às vezes, não passou de um sonho. Às vezes a realidade é dura, cruel, mas necessária.

Encontrar amigos é necessário; amores, então, nem se fala. E aqui não é bom falar e sim escrever. Foi naquele fatídico dia de São Pedro, nos arredores da pequena vila chamada até então de São João da Bela Vista (que posteriormente passou a chamar...). Ela caminhava lentamente pelas ruas empoeiradas de São João da Bela Vista em data de São Pedro e reclamava com Sto. Antônio por ter passado mais um ano de sua vida sem encontrar o seu companheiro que sonhava ter por toda a sua vida.

Moça de cidade antiga, melhor, de vilarejo como o de São João da Bela Vista acreditava piamente que Sto. Antonio Casamenteiro podia tudo e, fielmente, entregava-se a esperar pelo amado com a fé no santo. E, diga-se de passagem, que a fé remove montanhas. E removeu!

Doroth, de beleza incomparável, ar singelo e lábios de mel (como diria o construtor da palavra) andava naqueles idos de já não me lembro bem meio cabisbaixa por não ter conseguido ainda – aos seus vinte e cinco anos – um noivo à sua altura. Possuía alguns dotes e não os queria compartilhar com qualquer um. Mas, como é sabido, que a certa altura da vida o melhor é abrir mão de tudo e sair a compartilhar com quem quer que seja. E Doroth já estava quase a esse pé quando naqueles idos encontrou Dony – um sujeito não muito ordenado para a época, ou melhor, para ela.

Dony estava apenas de passagem por aquelas terras. Sabia-se de onde ele era apenas por comentar mais ou menos com alguns que se fizera amigo dele. Nada tinha, nada carregava e pouco – ou quase nada – falava de si. Apenas aceitava sugestões do tal pároco da cidade, naquela época chamado de Santinho.

Segundo as más línguas do vilarejo – e diga-se de passagem também que pequenos lugares há línguas maiores – o tal Dony não era boa pinta. Estava ali a procura de mulher. E mulher com todas as letras maiúsculas: de preferência de A a Z, com todas as cumplicidades possíveis. Outros, ainda, dizia que o pároco Santinho estava a lhe preparar uma bela mulher para casamento. E, por fim de algumas semanas, o Zé da Sanfona dizia que Dony já tinha escolhido a mulher no vilarejo. Era apenas ‘coisitas de dias’.

Doroth, na sua caminhada para a Igreja, foi surpreendida (e ela não sabe explicar como) frente-a-frente com Dony. (E já tinha rezado muito para Sto. Antonio que aquele cabra-da-peste não podia cruzar o seu caminho e nem ser o seu companheiro. E tinha até pedido intercessão de São Jorge da Espada que cavalga aquele maravilhoso cavalo na Lua) Mas, pelo jeito, nada tinha adiantado: ali ele estava, frente-a-frente, olho-no-olho – ou ainda como se dizia naqueles idos de já não me lembro bem – cara-a-cara. De longe o cabra era vistoso e de perto, com o coração a palpitar mais ainda, o tal cabra-da-peste era beautiful! Para ser mais preciso: wonderful!

Tentou desvencilhar do embaraço apenas abaixando a cabeça e seguindo o seu caminho, mas foi segura pelo braço, depois puxada para perto pelo cabra-da-peste, audaciosamente beijada e, por fim, solta. E Doroth gostou! (No seu íntimo de menina pura queria mais.) Dony olhou-a e disse que em breve voltaria.

Doroth, sem saber o que fazer, seguiu seu caminho e, ao pé da Igreja de Sta. Helena – também sua ouvidora de todos os dias, entrou para rezar. O pároco Santinho na ocasião estava trocando algumas velas que chegavam ao fim de seus choros e a viu. Esperou-a acabar de rezar e intercedeu:

- O que fazes tão cedo na Igreja, Doroth?

- Apenas vim suplicar clemência a Sta. Helena.

- Algo de errado, Doroth?

- Não.

- Não mesmo, Doroth? Você está na casa do Criador e nada se esconde.

- Sabe, seu Santinho, um cabra-da-peste cruzou o meu caminho e me beijou.

- Te beijou? E você o que fez?

- Acho que não fiz nada.

- E o que mais que aconteceu?

- Mais nada, oras. E o que o senhor esperava que acontecesse?

- Nada! (Fazendo o sinal da cruz.)

Um breve silêncio permaneceu entre ambos e foi quebrado por Doroth:

- Seu Santinho, o senhor conhece aquele cabra-da-peste que anda estes dias por aqui?

- Quem?

- Um tal de Dony.

- Conheço-o de longas datas.

- Hum!

- Hum!? Por quê?

- Por nada.

- Foi ele que a beijou?

- Foi.

- E você gostou?

Doroth abre um sorriso delicado. Aprovando o beijo que recebera (mesmo que intercedera a várias divindades para não ter o cabra-da-peste por perto).

- É, não precisa dizer mais nada. Ele é um bom sujeito. Fique tranqüila. Vou conversar com ele.

- Não, seu Santinho.

- Por que não, Doroth?

- Não foi nada de mais.

- Como não?

- Talvez foi sem querer, de raspão.

- Talvez...

E Doroth saiu da Igreja em direção ao velho casarão que pertencera ao bisavô, ao avô, ao seu pai e agora a ela – filha única. Como no vilarejo de São João da Bela Vista ninguém fechava as portas quando saía, Doroth não estranhou nada (mas as janelas da primeira sala estavam abertas).

Doroth entrou e se assustou. Dony estava recostado numa velha poltrona de couro. Logo que a viu, ficou de pé e pediu desculpas por aguardá-la ali dentro de sua casa. Dony explicou que estava no vilarejo de São João da Bela Vista a procura de uma bela mulher e encontrara nela todos os requisitos que em sua mente formulara. Esperava apenas um sinal de positivo de sua parte para mui breve concretizar aquele primeiro beijo em outros vários.

Meio sem jeito, Doroth argumentou que não o conhecia para responder que sim ou que não. Precisava conhecê-lo melhor. Precisaria conhecer a sua família. Saber o que ele fazia e etecétera e tal...

Dony apenas argumentou também que não a conhecia, mas estava deixando o fogo do amor falar mais alto (bons argumentos estes, quase sempre infalíveis). Doroth concordou em parte e deixou-se levar pelos lábios de Dony – que nos idos daquele tempo já andavam adiantadinhos.

Amores para todos os lados. Canções para todos os lados. Portas e janelas a se fecharem e depois a se abrirem. Suspiros e mais suspiros. E os anos se passaram...

Hoje, muitos anos depois Doroth – agora recostada na velha e empoeirada poltrona de couro – observa Dony. Este não fala mais nada, apenas dorme no sono do amor. Ela sabe que dali a poucas horas terá que dar o último adeus a Dony – e, pouco a pouco vai relembrando aquele primeiro beijo furtivo numa antiga rua do então vilarejo de São João da Bela Vista.

Maio de 2004

Prof Pece
Enviado por Prof Pece em 20/12/2006
Código do texto: T323657