Fim de Tarde
Fim de tarde
Nas horas do fim de tarde era feito pra descansar. Um dia de trabalho duro. Acordava cedo junto de meu pai, que não saia pra trabalhar sem me levar junto. Tínhamos uma pequena fazenda de plantação de cana-de-açucar. Tomávamos café. Não conversava muito. Alias, lá em casa ninguém dizia nada. Minha mãe não conversava com meu pai. As coisas andavam nem sei como. O que me incomodava era ser obrigado a ir trabalhar com ele. Não que não gostasse. Mas muitas coisas que meus amigos da minha idade estavam fazendo eu não fazia.
Sábado por exemplo é dia da matinê na cidade, não participo. E todos os meninos vão pra namorar e dançar. Nessa hora estou chegando em casa, tão cansado que não agüento me divertir. Meu pai trabalha no corte de cana. Eu indo o corte era mais rápido. Então pensava que faria falta se eu não fosse. Fico sempre perto dele na canavial, cortando, as vezes carregando. Minha mãe vai levar a comida.
Como a fazenda é perto, ela vai a pé. Duas marmitas apertadas num pano de prato. Quando dá meio-dia em ponto ela chega. Apenas pára de frente à colheita, entrega a marmita e recolhe seu olhar ao horizonte quente. Também não falava nessas horas. Sentávamos os dois na pedra. Meu pai come igual um bicho, segurando a colher com a mão inteira e enfiando na boca até o fundo. Quando terminamos ele acende uma cigarro e serve café. Eu tomo junto. A meia hora que resta pra descanso eu me deito e olho o céu, que nessa época do ano está azul e fresco. Ele senta com as pernas arqueadas, joelho curvado, fixa a cabeça para o chão e não vê o tempo passar. Levanta sem dizer muito e segue para o campo.
Algumas vezes, ela trazia a marmita , deixava a gente comendo e se embrenhava no canavial, meu pai fazia o mesmo ritual, comia, tomava café acendia o cigarro e logo depois se escondia atras dela. Sumia na imensidão verde. Voltava quase na hora de recomeçar. Saia do mato arrumando os cabelos e a saia. Eu fingia não entender. Na verdade mesmo eu não dava corda para as imagens que me vinham. No fundo eu gostava quando ela fazia isso, me excitava. Minha mãe e meu pai, perdido no meio do mato, sei lá fazendo o quê. Eu imaginava sempre algo perverso . Mas quando me dava conta que era minha mãe, a culpa fazia eu deixar de pensar. Ocupava o tempo com o vento que varria a canavial criando uma superfície branca.
Mesmo com essa intimidade perversa entre eles, continuavam sem se falar. Não se comunicavam. Fora desse tempo de encontro com o corpo, não havia mais nada que indicasse um homem e mulher. O silencio que existia na nossa casa era carregado de algo secreto que atinava minha imaginação. Tinha sensação que precisava sair, ir algum lugar. Ao mesmo tempo queria ficar, talvez vê de perto a intimidade sem palavras. Claro que nunca dava atenção a isso, mesmo porque uma sensação de intrusão não me deixava continuar, como se tivesse invadindo um mundo misterioso que não fosse o meu.
No final do dia quando estamos os dois exaustos, guardávamos as ferramentas. O escuro já beirando a serra. Voltávamos mais uma vez sem dizer muita coisa, também não perguntava. É como se não tivesse nada a se falar, já que freqüentávamos a mesma aridez. Falar disso seria apenas estender a angústia do dia, que já tinha sido muito longo. Percebia que sua costas doíam. Tocava sua cintura, mas sem alarde. E durante o corte da cana, na hora de levantar, via descansando perto do chão. Não queria voltar ou já não agüentava fazer tanta força.
Em casa minha mãe servia o jantar. Ele comia e descia pra frente da casa. Eu queria fazer o mesmo, mas já ficávamos tanto tempo juntos. Deveria ser difícil pra ele ficar o dia todo comigo. Então eu o deixava sozinho. Minha mãe cortando alho, cessando a farinha, escolhendo o feijão do outro dia. Não sabia qual caminho dos dois tomar. Cada um era mais assombrado que o outro. Não me lembrava a ultima vez que os vi conversando, sorrindo ou dizendo algo engraçado. Também não tinha briga ou discordância. Apenas esse profundo sem cor. Um abismo sem definição. Quando me cansava de contemplar aquilo, saia um pouco pra rua. Ia até a praça, conversava com alguns amigos. mas não me animava.
Quando voltava rápido demais ouvia gemidos no quarto, que tinha a janela voltada pra rua. Não batia na porta, apenas ouvia aquele sons e grunhidos afobados que saia de minha mãe. Barulho da cama rangendo como se meu pai quisesse fazer minha mãe morrer. Não via apenas intimidade, via um homem com raiva querendo descontar alguma ofensa. Ela gemia alto como se gostasse ou até precisasse de ser castigada e maltratada. Quando me cansava de ouvir aquilo batia forte na porta. Demorava algum tempo ela abria. Quieta, não parecia a mesma pessoa que estava desesperada. Não conseguia colocar essas duas mulheres juntas. Não fazia sentido. Servia meu jantar, tocava meu cabelo e voltava a dormir. Era como se o sepulcro só existisse na minha ausência.
Num dia desse quando chegamos em casa. Não encontramos a janta pronta como de costume. Meu pai foi até o quarto e voltou à cozinha, sentou e continuou calado. Eu fui pra sala e fiquei de lá observando. E foi ficando tarde e nada de minha mãe voltar. Mostrou finalmente alguma preocupação. Foi até a rua, que estava muito escura, apenas uns poucos postes amarelando os cantos. Olhou profundo o fim da estrada e voltou pra dentro. Acendeu o fogo. Demorou para o fogo pegar. Fez um café. Eu também sair e não vi minha mãe voltando. Quase meia noite e nada. “Ela foi embora, vai dormir!”. Anunciou essa frase e eu disse que estava sem sono. Desceu o barranco do quintal e encostou numa arvore. Via apenas sua penumbra parda colada na árvore escura. Minha mãe foi embora e meu pai sumia no escuro.
Ele continuou calado como era. Mas era diferente. Agora dava pra ver uma dor imensa nele. Vi que a qualquer momento explodiria de medo ou de tristeza. Seus passos solitários se tornaram pesados e rancorosos. Eu apenas olhava. Apenas podia olhar. Eu sabia que meu pai estava morrendo.
Não mudamos muito nossa rotina, continuamos os dois trabalhando. Mas ele não comentava com ninguém. Eu também não falava e nem perguntava. Nunca soube porque um dia de repente nossa vida morreu. E isso aconteceu antes dela ir embora. Como uma ruptura. Minha casa ficou esburacada. Eles não conversavam, não dizia nada e eu sentia que não tinha espaço para saber os motivos. Acabaram-se as visitas, os passeios ou os fins de tarde animados. Uma corte, sem explicação alguma. Passei algum tempo culpado, imaginando que eu fosse a razão. Queria entender, achar um desentendimento ou uma crueldade que não fosse apenas aquela solidão que os dois viviam. Não encontrava nada. Simplesmente ela foi embora e ele nunca me disse o que houve.
Em um dos dias de trabalho, meu pai desceu pra cortar uma folha de cana, desceu de cócoras até o chão. Pensei que estivesse com as costas doendo. Não estava.