AMOR DEPOIS DO SEXO

Ele dorme no meu sofá vermelho.

Seu frio é como um pedido do abraço que eu não posso mais lhe dar.

Meus braços o enlaçam se ele fosse meu, como se de mim necessitasse, quando é feliz.

A noite foi longa, longússima, diante do grito agoniado na minha porta, exigindo um amor que está aqui, mas que não me serve mais, posto que é um amor triste, renegado, quase maternal.

Apareceu cocainado, perdido, arranhado e sozinho, no escuro da madrugada; os olhos caninos, as orelhas baixas, o focinho perscrutando o meu cheiro azedo de álcool dos restos dos dias e noites em que o amei e a ele elegi como o maior dentre os mortais.

Ele tem pleno conhecimento e segurança de saber que só ele pode chegar assim, arruinando meu dia inútil, minha noite vesga, minha sensação de incompletude tão duramente construída anos a fio, depois dele. Orgulho-me de tê-la: à incompletude.

Ele me completa em fragmentos, com os seus, como se fragmentada fosse o meu estado natural, e é. assim também o dele... ele disse, duvidas?

Ele dorme e ressona, tem pesadelos; sua filha chora e por outro é acalentada, ele não sabe por que. Mas eu sei.

Afasta de si qualquer um que o ame, com sua independência carnívora, teimosa e sexual, sedento por carnes e sangue.

Mata e dilacera quem lhe rodeia, e só eu sobrevivi, já morta antes dele, pois o matei antes, dentro de mim.

Não fora. Nunca!

Restaram nossas carcaças de um tempo podre onde pensávamos que sobreviveríamos um ao outro.

E sobrevivemos, que coisa mais estranha!...

Zumbis?...

E hoje, depois de tantas confissões de sêmem, sangue, suor, saudade e saliva, ainda temos algo em comum:

A falta que nos faz ser ouvidos, realmente ouvidos, por quem nos conhece tanto e tão completamente, que nada mais choca, entristece, magoa, maltrata ou comove.

Sou ouvidos para ele! E é disso que preciso, quando lhe telefono. Ele sabe. Mesmo que eu nunca tenha lhe dito.

Vem de pau mole e braços quentes, abertos os ouvidos e os olhos piscando em entendimento. Ele não entende nada, mas ouve.

Ele é o meu confessionário, calado e vazio, e eu o dele.

Eu não o absolvo - como poderia? - nem ele a mim.

Sabemos que não temos perdão.

Mutuamente condenados, sem julgamento, num acordo tácito de culpas.

Somos um para o outro como o Muro das Lamentações, ao qual peregrinamos apenas para chorar, sem que ninguém nos julgue, condene ou perdoe. Apenas nós, entre nós.

Não há perdão algum para o que fizemos com nossas vidas.

Mas nos perdoamos.

E quem disse que o perdão é o que importa?

Ouvidos são muito mais úteis.

E isso, ao menos, damos um ao outro, na calada da noite, depois da farra.

Minha sem ele, dele sem mim, finalizadas sempre com uma trepada

redentora - mercy fuck - E ele bebe meus estoques especiais, ele fuma meus últimos cigarros, mas compra depois com os trocados da passagem de ônibus que eu tenho que repôr, se quiser me livrar dele no fim do dia, ou da noite; ele rouba meu travesseiro filho único e pede massagem nas costas, para tentar dormir.

Depois.

O abraço que não posso mais lhe dar dou de braços mortos, e ele sabe.

Não espera que eu o ame mais, mesmo sabendo que o amo.

Assim também eu.

Iama K
Enviado por Iama K em 18/09/2011
Reeditado em 15/06/2012
Código do texto: T3226480
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.