O ANIVERSÁRIO
O homem já contava seus cinqüenta e oito anos de idade, era alto, magro, mostrava a barriga saliente conseguida, a muito custo, com os anos à mesa de bar, tinha o rosto grave e os outros detalhes de seu físico não mostravam nenhuma preocupação com vaidade ou saúde.
Eram dezenove horas quando os primeiros convidados chegaram. Ele os olhou e foi cumprimentado por alguns. Na verdade não conhecia a maioria deles, tendo em vista que a festa tinha sido planejada e executada pela sua filha mais nova.
Sua festa de aniversario foi feita com tanto esmero que ele pensou estar na festa de outra pessoa. Pra ter certeza, fitou, rapidamente, os cartazes com frases de pessoas famosas, em particular um muito detalhado feito com letras azuis e em itálico.
Aquela frase não lhe pareceu estranha e, ao terminar de lê-la, notou seu nome no final da epígrafe. Por fim, a certeza de estar na sua própria festa de aniversario veio quando ele olhou para o bolo estacionado no final da mesa. O bolo estava todo confeitado com detalhes em verde limão e tons claros de azul, porém o que mais lhe chamou atenção foi o seu nome escrito no centro e nas laterais do bolo.
Olhou na direção de alguns convidados que gargalhavam ao lado do sofá onde estava sentado e novamente pôs-se a olhar o bolo. Desta vez o que lhe chamou a atenção foi a quantidade exagerada de velinhas coloridas, cinqüenta e oito no total. Teve vontade de gargalhar pensando que aquelas velas bem poderiam ser suficientes pro seu velório, mas guardou os risos pra mais tarde.
Para ele aquilo tudo não tinha muita importância. Quando a festa acabasse, os cartazes seriam guardados ou rasgados, nada restaria do bolo senão alguns farelos cobertos de açúcar de confeiteiro, uma pilha de louça suja ficaria amontoada na pia da cozinha até o dia seguinte e todos iriam embora de pança cheia. O homem pensou que pelo menos as velinha serviriam pra clarear as noites de blecaute, que não eram raras.
Ele percebeu uma taça de vinho esquecida na mesa perto do sofá. Ponderou pensando em tomar aquela bebida divina só pra não deixar que anos e anos de clausura em uma adega qualquer fossem desperdiçados nos canos imundos da cozinha, mas resolveu deixar a taça entregue à sorte para que outra pessoa pudesse ter a honra de desfrutar daqueles poucos goles de prazer.
Passou a mão no rosto com se estivesse muito cansado depois de um longo dia de trabalho e sentiu o cheiro de cigarro impregnado nos seus dedos. Lembrou-se de que a mesma mão que, por muitos anos, dançara em par com a caneta também valsara muito bem com os cigarros. Cheirou os dedos de novo e imaginou que aquele odor desgraçado de fumaça o acompanharia até seus últimos dias.
Ele olhou sua filha, a organizadora da festa, e notou que ela estava com ar preocupado, ou seria decepcionado? Pensou que ela pudesse estar realmente desapontada, pois o aniversariante parecia querer estar em outro planeta. Então o homem resolveu soltar alguns sorrisos falsos aos muitos estranhos e poucos conhecidos.
Até que chegou a hora fatal de cantar os parabéns. Ele olhou para todos que estavam ao redor da mesa, soltou mais alguns sorrisos, e sentiu muito calor, pois as velinhas acesas mais pareciam uma fogueira. O canto entoado na hora dos parabéns mais parecia uma ladainha cantada em cortejos fúnebres. Até chegou a escutar o final “muitas felicidades, muitos anos de vida!”
Ele se lembra de ter pensado na falsidade da canção. Afinal, é mesmo correto desejar felicidades e muitos anos de vida a quem tem cinqüenta e oito anos. O correto deveria ser cantar “muita tranqüilidade e uma boa partida!” Todos bateram palmas e ficaram olhando para o homem como se esperassem um discurso. Ele virou desconfiado para a filha e perguntou se eles queriam que ele fizesse um discurso.
Ela respondeu que era só para ele apagar as velinhas. Ele sorriu, talvez tenha sido seu único sorriso sincero aquela noite, e soprou com toda força, mas apenas um terço das velinhas se apagou. Foi ajudado por um jovem que estava do seu lado direito. Ele agradeceu ao jovem e notou que todos o olhavam novamente. Voltou-se para a filha e, quando ia perguntar se era hora do discurso, alguém ao fundo da sala gritou “e o primeiro pedaço vai para...”
O homem levou um susto e disse quase sem pensar “para quem partir o bolo primeiro!” Todos caíram na gargalhada, menos a filha mais nova. Ele indagou a si mesmo sobre quem havia inventado esse ritual de dar o primeiro pedaço a alguém, pois, ao dar o pedaço premiado a alguém, ele estaria excluindo várias outras pessoas.
Logo vieram os abraços e apertos de mão, alguns beijos e poucas palavras soltas em sua homenagem. Não houve discurso, mas a profecia se cumpriu: o bolo se esmigalhou; além de deixarem a louça suja deixaram algumas peças quebradas e todos foram embora com pança cheia. Alguns até saíram acalentando o bucho como se estivessem grávidos.
O homem acendeu um cigarro e foi sentar-se no mesmo lugar do sofá. Inclinou a cabeça para trás e soltou algumas nuvens de fumaça pra cima. De repente, deparou-se com a taça de vinho ainda intocada no mesmo lugar. Ele não poderia cometer o pecado de deixar aquela preciosidade abandonada à própria sorte. Enquanto alguns começavam a limpar a bagunça pós-festa, ele pegou a taça com a mão esquerda, o cigarro com mão direita, pousou os pés à mesinha de centro a sua frente e pôs-se a olhar para o nada pensando que, por aquele momento, a noite tinha valido à pena.