Festa de Reis
A rua de paralelepípedo tremia de quente. Ficando na calçada João Leitoa pirraçava com sua presença grande. Na entrada da festa pedia mais um paletó. Seu Raul escorraçava ele da calçada enquanto gritava ao Mestre Nelson do bumbo: “Se apronta! Cadê Mariovaldo, aquele cachaceiro. Falei pra chegar cedo. Sai, Leitoa!, Já te dei uma calça semana passada. Olha esse sol! Não sei como não morre!”. Toda roupa que ganhava João vestia sobre a do corpo. Parecia um espantalho estufado . Lavado de suor, foi empurrado pra outra calçada.
Enquanto isso Dona Filu servia às pessoas bolo de aipim e garapa de cana. A rabeca ensaiava um som nas mão de Antônio Chafariz. A caixa afinada por João dias, e Boy, filho de Mestre Martinho, levantava o estadarte, com o menino Jesus, rosto de anjo em clemência a quem olhava. Alguns já estavam apostos, com suas roupas e instrumentos. Prontos a subir a Rua Jacarandá. Os donas de casa, as senhorinhas já nas janelas, esperando o grupo de reis em suas casas. Correndo nas bolsinhas, separando o dinheiro, fazendo café, ou trazendo pra sala a pinga apurada, temperada de erva-doce.
Dona Judinha na janela, chamando os meninos pra tomar banho. Todos no encanto. Era o grupo de Reis do seu Raul, Mestre Raul como alguns chamavam nessa época. Dezembro terminando e rua era banhada de glória. Quando em tempo de Reis, o velho que ganhava um ar profundo de respeito. Todos se aprontava, pois o menino Jesus pousaria em suas casas.
Olhei um tempão pra aquela bandeira, aquele retrato no pano bordado, o homem segurando com tanta força, como se quisesse Jesus só pra ele. Olhei o João Leitoa do lado com cara de bêbado, quase caindo embaixo do calor. A mulher de seu Raul, Dona Elza, não fazia movimento nenhum, observava o brilho do marido, feliz e amado por todos naquele momento. Sua cara mostrava um certo nojo pela festa.
Dona filu andava pra lá e pra cá, toda zambeta, sem ter mais função alguma. O caldo de cana acabou. apertava os pés na sandalha que os dedos sobrava. As canelinhas de graveto dava que ia quebrar. Nunca tinha visto alguém tão velho. Vez ou outra soltava uma cusparada marron de fumo no chão. Meu estômango embrulhava e eu cuspia também. Os filhos nem tinha certeza se podiam estar ali mesmo. Tinha tanto medo do velho. Não sabia se divertia com a festa ou se deixava o ódio aparecer. Lembro que todos já havia apanhado naquela semana. Seu Raul quando dava de bater, não poupava ninguém. Todos pagavam pelo mal feito de algum. E ele nunca explicava porque batia em todos. Cada um protegia o outro de malinar. O que deixava o ambiente apreensivo. E isso fazia merda acontecer a todo tempo. Viviam em estado de pânico e raiva.
Eu não gostava de seu Raul, mas eu não saia da casa dele, pois eu era muito amigo de Robério
Seu filho mais novo, e amava de paixão Verinha, que nunca deixava eu pegar nos peitos dela, mas vivia prometendo. Até recado me mandou, dizendo que aquilo estava prometido. Isso me deixava animado, mas ela nunca deixava. Até quando entrava no quarto eu perguntava se podia. Ela dava um sorriso e perguntava que graça tinha pegar em peito. Eu não sabia explicar apesar de sentir muita vontade. Dona Elza, desconfiada, gritava: “Sai desse quarto, vai brincar no quintal”. Eu saia sem graça e só voltava quando de novo Verinha aparecia em casa toda tímida me chamando pra visitar o presépio. E me fazendo olhar de promessa. De novo minha esperança nascia em seus peitos que a cada dia parecia mais bicudinhos
A casa dela era tão pobrezinha, dava até a vergonha de ir até lá, só umas esteiras no chão. dois tamboretes e um banco grande madeira que tomava conta de uma parede inteira. Onde seu Raul sentava quando recebia alguma visita. Mas a cozinha tinha sempre café. E meio-dia o cheiro da comida era muito bom. Comida nunca faltava. As paredes eram feias e esburacadas. E aquelas imagens de São Sebastião flechado, dava mais medo do que fé. Os quartos, haviam três, eram escuros e mofados. Fechados por cortinas esfiapadas, que vez ou outra quando ventava, criava uma luz rala na parede que deixava um pouco mais alegre. Medo mesmo dava o quadro de Santa Luzia, com dois olhos na bandeja. Quando via um bandeja lembrava dessa santa e eu me arrepiava. Muito macabro. Jesus havia vários. Um de coração pra fora, cheio de espinhos e olhos magoados. Mas o da cozinha tinha cara de bonzinho e brincava com um carneirinho no gramado. E são Jorge na entrada, metendo uma espada no dragão, esse eu gostava de ver. Dava medo como os outros. Como me dava vontade de ter uma espada daquela, relevava o medo e olhava com mais vontade. O quadro parado, sem nunca terminar de matar o dragão me deixava muito curioso. E seu Raul dizia enquanto fumava à noite na calçada, “São Jorge hoje está na lua”. Eu não via nada, mas acenava como se também percebesse.
No fim da tarde, o radio tocava a ave-maria e Dona Elza fazia todos os filhos se ajoelharem de frente pra janela e rezar e agradecer a Deus. Todos obedeciam. Ficavam inquietos e com raiva porque não tinha fé que dava pra aquele povo. Nem deixava os meninos brincar.
E tinha Dona Filu, que fazia seu almoço separado do resto da casa. Foi morar com seu Raul depois que o outro filho morreu. Dona Elza nunca gostava dela. Deixou a velhinha no cômodo escuro no fundo da casa. E vez um fogão de barro a céu aberto. À noite era triste vê a velhinha soprando o fogo no meio daquele vento. A vantagem era que o quintal ficava claro e a gente até mais tarde brincava nos fundos. Mais de uma vez, nessas vezes, eu tentanva pegar nos peito de Verinha. E ela empurrava minha mãe e dizia, com a boca trancada, “Eu vou deixar, calma, não faz sem eu deixar, que fico com medo.’...
Na epoca de reis, algo transformava tanto na rua como na familia. Por milagre a paixão se raul por esse momento e com a importância que ganhava, os meninos eram esquecidos. Então criava uma leveza dentro de casa que deixa a vida mais facil e mais alegre. Enquanto o reis acontece, algo novo, brotava para os meninos e eu ganhava com isso, já que eu gostava muito deles e na minha casa não tinha muito o que fazer.
“A igreja da Lapa foi feita de pedra e luz, vamos visitar meu senhor bom Jesus”. Todos cantavam com ar fúnebre. O bumbo batia, e as flautas acompanhava. Andar lento. Uma sobriedade de enterro possuía o rosto de todos. Era desrespeito a Deus sorrir naquele momento. Era a saída. É quando o menino Jesus dava os primeiros passos no mundo. Um olhar de choro fazia a gente doer junto com eles. Parou na frente de minha casa. Minha mãe já estava à espera. Meu pai arredio mais ao fundo. O embornal de recolhimento na frente. Minha mãe jogou dentro uma nota boa de dinheiro. Seu Raul deu um sorriso, deu acordes mais forte e começou a festança, mudança de ritmo, cantava alto, ele e os companheiros. Mariovaldo montava no bumbo, acrobacia com o instrumento entre as pernas, a rabeca e a sanfona rodeando todo aquele show. Minha vozinha de noventa anos, que não falava mais nada, Deu umas palminhas sem força. Isso me alegria o que me fez esticar meus dedos até os peitos de Verinha, que se afastou dizendo: “Respeite o menino Jesus”