SONHO DE MENINA MOÇA

Nenhuma imagem nova me vem à mente. Tudo o mais desaparece de minha memória, como que numa pane geral em meio a uma tormenta cheia de trovoadas. Tudo o mais me fugiu. Apago a luz desse quarto e no escuro da noite, apenas vejo aquele sorriso encantador, aquele olhar profundo, aquele rosto sereno e límpido a me observar. Em vão tento olhar pela janela para admirar a paisagem que vejo por entre as cortinas. Até que por alguns instantes ainda consigo contemplar o céu com a lua semi escondida por entre nuvens parcas e a visão do rio e da ponte que liga norte a sul dessa cidade. O silêncio da rua e a mudez das pedras do calçamento são um contraste com minha alma entorpecida por aquele rapaz alto, de olhos fixos e firmes, com seus cabelos milimetricamente arranjados em perfeita combinação com sua postura elegante e cordial, sempre solícito quando chegava à nossa mesa. Somente o burburinho da correnteza do rio traz um alento a meu espírito atormentado e agitado tal qual um vendaval arrasador.

Ontem saímos para jantar em comemoração ao aniversário de casamento dos meus pais. Aquele restaurante era um convite ao mais perfeito paladar. Tudo naquele lugar é bonito. Foi lá também que jantamos nos meus quinze anos, faz pouco mais de um mês. Papai e mamãe adoram aquele lugar. Beto é o mais belo dos garçons existentes na face da Terra e em toda a história da humanidade. Eu o havia percebido na última vez que lá fomos, mas ontem, ele olhou-me fixamente nos olhos e sorriu. Um sorriso só pra eu mesma. E ficou a me olhar por um bom tempo. Vinha e ia de mesa em mesa naquele terno elegante carregando sua bandeja com a precisão milimétrica dos astros em movimento em torno do Sol. Seu olhar escapava por entre uma manobra e outra e cruzava com os meus. Meu coração palpitava por dentro e minha alma queimava numa febre acima de cinquenta graus de profundo êxtase. Batia-me uma paixão por dentro, avassaladora, ao cruzar o olhar com aqueles olhos colocados por Deus naquele rosto na mais perfeita sincronia com sua face rosada.

Vejo ao longe um casal que desce a ponte e caminha em direção à nossa rua, conversando amigavelmente, sorrindo, se abraçando numa explosão de ternura que se amplia a cada passo, a cada sorriso e beijo trocados. Minha mente começa a vagar por entre as nuvens e toca a lua cheia, inspiradora de poetas e testemunha de amores múltiplos e vários por sobre o planeta na longa jornada da humanidade por sobre a Terra. Num instante milagroso fecho os olhos em minha janela e vejo-o vindo, subindo a rua com seu sorriso mágico tal qual o surgir do sol num alvorecer ao mar azul infinito com sua beleza inatingível e irradiante a aquecer as águas ainda gélidas após uma fria madrugada. Beto sobe a rua com sua elegante postura e olha para a janela de nossa casa. Sorriso correspondido, Beto me encanta com o mais terno dos beijos, ao sabor do mel, como uma melodia dos anjos no coro celestial. Seus braços se debruçam sobre a portada da janela e se vai, de costas para não virar-me o rosto, sorrindo imensamente e deixando-me extasiada. Um frio arrebatador corre por todo o meu juvenil corpo, transportando as mais fantásticas sensações de prazer dentro de uma alma enamorada.

A brisa da noite é real e me faz abrir os olhos. A rua continua indiferente aos meus sentimentos de menina moça e se apresenta fria. Não havia Beto naquela rua. A esta hora estaria ainda no seu trabalho noturno, a executar manobras por entre mesas tantas com pessoas várias, desatentas e preocupadas em não ver quem esta por perto. A brisa acaricia minha pele e refresca por alguns momentos meu coração aquecido de paixão, que palpita freneticamente num ritmo alucinante, tão contrário ao ritmo da rua de pedras de nossa casa e do silêncio questionador dessa rua.

Meu coração ignora as juras de amor de Rafael, colega da escola que todos os dias me leva presentes e me oferece palavras eternas de amor. Não posso trair Beto. Ele é o dono do meu coração e não há espaço para outro. Aquele olhar exclusivo povoa minha imaginação e me faz viajar para meu mundo imaginário de doçuras e nuvens suaves flutuando no meu céu particular. Fecho a janela ao finalizar todos os menores ruídos da rua. Em minha cama tento fechar os olhos e despovoar meus sentimentos de sua roupagem apaixonada e do olhar daquele que escolhi para amar. Eu, tão jovem, ainda sem entender o amor, apenas vivenciando-o num único olhar e num único gesto de sorrir para mim. Estaria eu enlouquecendo? Meu corpo dá sinais de que algo comigo acontece que foge ao meu controle. Não consigo não amar o Beto. Dizem que coração de adolescente se apaixona hoje e amanhã nem lembra o nome. Mas eu não estou apaixonada, estou amando e sei que estou sendo amada. É certo que não houve ainda a possibilidade de ele me amar e corresponder o sentimento mesmo que tem por mim. Mas eu espero. Sou paciente e sei reconhecer um sorriso de desejo como os que ele a mim oferece. Não me engano, e vivo cada dia ansioso pelo seu fim, para que no fim de vários deles eu já tenha idade para me entregar ao homem que escolhi para viver comigo até o fim dos meus dias.

A cama torna-se um tormento e o lençol se assemelha a um jardim de espinhos no qual meu corpo se martiriza. Somente a certeza daquele sorriso como prova de seu amor me consola e me faz ainda sorrir ternamente, tão distraída como uma boba por onde passo. Em claro passo minhas noites. Minhas noites são quentes mesmo no inverno, pois são povoadas pela minha memória dele a me sorrir e a me querer tanto quanto eu o quero. Tento dormir em vão o sono dos anjos e desviar meu pensamento dele para não enlouquecer. Inútil! A loucura é a prova do meu amor por ele. Quero dormir apenas para com ele sonhar, e nesse lhe roubar o beijo de minha imaginação e ouvir dele as palavras de amor represadas no seu olhar de príncipe. Tento dormir para sonhar...

Enquanto isso Beto trabalha freneticamente no restaurante. Hoje, início do fim de semana o trabalho é três vezes maior. Do outro lado da ponte, distante daquela casa da rua de pedras, Ester dorme com os dois filhos aguardando a chegada do pai pela manhã. No restaurante, Beto sorri para todos. Assim é que consegue a simpatia dos clientes e se mantém no trabalho. Ao alvorecer volta feliz para os braços de sua amada família.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 15/09/2011
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