O DOIDO DA CHUVA
-Morreu?
-É, morreu!
-E precisa de mais? Pra morrer bastar estar vivo!
-Mas como pode? Ontem mesmo ele estava no meio da rua gritando com todo mundo.
E foi assim, o menino era famoso por suas traquinagens de época de chuva. Quebrava galhos de pé de siriguela, roubava goiaba, matava galinhas com baladeira, torturava gatos e cachorros e esculhambava deus e o mundo. Tudo isso acontecia, estranhamente, somente em época de chuva. O motivo de tanta danação ninguém sabia direito.
-Não compadre aquilo foi a febre do sarampo que lhe derreteu o juízo.
-Foi não comadre, é que o menino não foi nem batizado.
E as especulações não cessavam, cada um que o conhecia de pequeno tinha uma pronta, diziam até que era uma praga jogada pelo avô materno antes mesmo do menino nascer. Certo mesmo é que o menino era, de certa maneira, temido por todos os meninos de mesma idade. Em épocas de sol e tempo seco, era tudo uma maravilha. O menino estudava, ajudava os pais a vender verdura na feira, ia a missa, tudo que se espera de uma criança normal criadas nos moldes do catolicismo. Ruim mesmo era só quando começavam as chuvas. Era um “deus nos acuda”, o caos da vizinhança, e as pessoas tentavam ao máximo relevar as danações do menino por consideração aos seus pais e pelo fato de o menino ser um anjo o resto do ano.
Nos primeiros sinais d chuva os pais já ficavam com coração na mão, faziam promessa, mandavam o padre benzer o menino, chamavam a rezadeira, mas nada dava jeito. Era só começar a chover que o menino saia num desembesto maior do mundo.
-Deixa de ser fofoqueira velha atentada do satanás, dizia ele as senhoras em beira de calçada.
-Vai atentar o cão com reza vendedora de cheiro-verde podre, bradava ele à própria mãe no meio da rua.
-Olha meu filho, cuidado com essas coisas, respondia a mãe, oh meu deus, esse menino ainda vai fazer uma “arte”, vai acabar dando cabo de alguém ou finda com a própria raça, será possível meu deus!
As temerosas profecias da mãe acabaram se realizando. No fim de um mês de março, ele saiu à procura de aventura, era tarde chuvosa e uma “reca” de meninos passou correndo em frente de sua casa.
-Onde é a bagunça? Perguntou ele já abrindo a porta pra ir junto.
-Lá na baixa da velha Rosa, a barragem do Chaga Testa arrombou e o rio ta parecendo um açude. Estão pegando piaba até com a mão, emendou uma das crianças. Eles sabiam que pra ter danação grande era só chamá-lo.
E foram, dispararam na carreira até chegar ao rio. Havia muita água mesmo, as mangueiras que ficavam a uns dez metros da margem estavam cobertas até o tronco. A meninada ficou com medo, mas o menino foi logo tirando a roupa e tibungou n’água. Não demorou muito até o primeiro sabido jogar o desafio para o menino.
-Sobe até i olho da mangueira e pula que eu digo que tu é corajoso!
-Subo sim, é aqui?
-Não, vai mais alto, mais alto! Bradou a meninada em couro.
Enquanto ele subia, a “reca” caia na gargalhada imaginando a queda. Criança é gente inocente, tão inocente que chega a ser malvada, perigosamente malvada. Com dificuldade o menino ia subindo, escorregou algumas vezes aumentando a aflição e satisfação dos espectadores. alguns chegaram a duvidar de sua façanha e então, num susto só, o menino pulou gritado e mergulhou de pé dentro d’água. Caiu meio torto. Uns fizeram uma cara de dor, como se sentissem a água batendo nas próprias costas. Outros fizeram cara de espanto, mas todos riram diabolicamente.
Cinco segundos passaram até que o primeiro menino parasse de rir, outros dez até que todos parassem de rir, e mais 30 para que os meninos ficassem pálidos sem saber o que fazer. A mãe do menino correu pro rio quando viu a procissão de meninos chorosos e desconfiados.
O cadáver só foi encontrado dois dias depois, enroscado numa cerca com a água do rio já baixa. E foi assim que sucedeu, bem como sucede em todo fim de mundo, o menino tido como “doido da chuva” ficou nas histórias e memória dos que os conheceram, virou lenda pra assustar meninos danados. Parece-me que os loucos só são louvados e temidos verdadeiramente na época de sua loucura.
* Texto inspirado numa conversa de fila de posto de saúde em dia de atendimento a hipertensos.