Zilminha

Nunca esqueci de Zilminha. Eu tinha 8 anos nesse tempo. Minha Vó, que era sua madrinha, molhava os olhos quando levantava ela no colo. Era tão magrinha e amarelinha. Chegava em casa e queria muito ajudar minha vó a passar roupa. Segurava o fole e soprava, dava umas duas levantas bem forte. Sentava cansadinha e dizia: “Nossa, madrinha, não agüento mais não”. Cobria sua cintura com um abraço. “Vai minha filha brincar com Julia, ela está lá fora”. Antes dela ir pro quintal levava até a cozinha. Dava um pedaço de bolo maior da fôrma. Tomava com leite quente. E saia rebolando com a barriga cheia em direção ao quintal com seu jeito pequeno.

Eu ficava na beira da murada olhando as duas brincar. Julinha tinha umas bonecas feita de tergal e enchimentos de paina, muito feias. Cabelos de vassoura. Penteava os cabelos das bonecas. Colhiam goiabas, cortavam em pedacinhos e comiam juntos como uma família . Assim brincava até dar a hora de ir embora. Muitas vezes seu Bilude, seu pai, gritava da janela. “Zilminha!!!” Ela saia triste e desligada. Dava impressão que não queria embora nunca. Passava sujinha pela sala reclamando baixinho, com as mãos trancadas.

Tinha o cabelo tão feio, sempre despenteado, mas preso com grampos. Assim a gente nunca sabia se ela estava desarrumada mesmo. Quando chamavam ela de cabelo de piaçava ficava com muita raiva. A canelinha sêca, dava dó na gente. Andava lento. Seu coraçãozinho sempre foi fraco. Ficou assim depois dos cinco anos. Tia zelita, sua mae, gostava de paparicar. Não gostava, olhava constrangida. Não gostava de ser tratada diferente. Minha Vó consertava, dizendo que era porque a Comadre Zelita ficava preocupada. Zilminha não entendia.

Quando brincava de roda na rua. Ela parava no meio. Parava e ria. Não ligava muito em brincar pela metade. Saia mais cedo, sua respiração diminuía. Era a fadiga que voltava. Criava um suspense. Todos já sabiam. Alguém gritava: “Porque a gente não brinca de contar historias? ”. Era a fala que todo mundo compreendia. Todos sentávamos, ela também. E todos contavam. Chateava porque sabia que mudou de brincadeira por causa dela. Fechava os bracinhos, emburrada de calundu. Cabecinha entre as pernas. Já estávamos acostumados. Assim permanecia até esquecer e voltar pra gente. Quando levantava a cabeça, já tinha um sorriso, como se nada tivesse acontecido. Era sua vez de nos contar alguma história. Contava sempre algo que assustava. Gerava medo, principalmente quando a cabeça vinha com um sorriso. Sabia que sua vingança ia começar.

Minha vó dizia que o coração dela era do tamanho de um limão, era pequeno, por isso ela cansava muito. Bebia água bem demorado, não virava de tudo. Fazia de goles, bem pequeno. “O fôlego fica curto, eu me canso”. Nem gostava de ouvir essas coisas. Vontade de chorar . Eu saia de perto e ia pra fora, não queria pensar. Não tinha jeito.

Gostava dela porque ela sempre queria gostar da gente. Trazia coisas pra comer quando vinha em casa. Ou comprava presente quando fazia seus exames em salvador. E a vozinha dela era tão diferente. Ficava fininha dentro da gente como uma agulha. Um dia Tia Zelita chorando, falou pra minha vó. Ela não sabia que eu estava perto. “Tenho muito medo, comadre, o medico disse umas coisas”. Não agüentei aquilo não. Não podia contar pra ninguém. Já nem conseguia brincar com ela de tanto que esse pensamento me perturbava. Quando a gente brincava na rua eu parava de brincar só pra ficar olhando ela de longe. Seu jeito de rir era só dela. Quando esquecia que tinha um coração de limão, dava gargalhadas que vinha saltando da garganta. Tudo que comia eu guardava um pedacinho pra Zilminha. Quando minha vó fazia algum doce, enrolava um pedaço num papel, colocava no bolso e entregava escondido. Ela pegava sem graça. Demorava de encontrar nas brincadeiras. Estava comendo escondido.

Passava todos os dias em sua casa. Pra fazer nada, ficava lá. Acho que ela nem entendia. Ficava só um pouco . Ela vendo televisão, nem se importava com minha presença. Eu não ligava. Depois de um tempo eu ia embora. “Fica mais?” Falava assim. Queria falar a mesma coisa pra ela. Tinha dia que ela estava bem animada. Andava até rápido. A gente olhava e estranhava. Parecia como a gente. Eu nem sabia brincar quando estava assim. Porque no outro dia seu cansaço voltava.

Era de madrugada, quando bateram forte na nossa porta. A gente acordou assustado. Era Seu Bilude, seu pai. Disse com a voz rasgando: “Minha filha se foi, Comadre”. Ele disse isso e caiu no meio do escuro. Minha Vó tentando achar as coisas. Eu era pequeno, mas me lembro. Vestiu uma roupa qualquer e saímos correndo. Descemos desesperados a rua do Fogo. Ela morava no final, quase perto do rio. Na frente da casa uma quantidade grande de pessoas. De dentro da casa só vinha gritos. Queria ficar do lado de fora, não tinha coragem de entrar. Nunca tinha visto ninguém morto. Acho que nem sabia que as pessoas morriam. Quando entramos ela estava deitadinha no sofá. Aquelas pessoas chorando em volta e já tinha vela por todo o chão. Seus cabelos estavam penteados.