Notinha de pimenta

Notinhas da vida

“Sai pra lá, pira atirada!”. Empurrava o fogo com palavras fortes, dava riso de olho pra mim. Meio dia, chegava da escola, era só esperar. A vontade de comer era grande. Não era só comer, era estar no mundo. A hora da comida era a mais gostosa. O fogão à lenha, as paredes fervendo de quente, o sol iluminando o corredor.

Minha vó concentrada nas panelas, mexendo o tição, a cinza subindo. Chegava com uma fome. Sentava de cócoras junto a porta e olhava ela trabalhar. O cheiro de coentro, cebolinha, o estalo do fogo, o copo quente de café em uma das mãos, a outra mexendo o arroz. Depois, as duas mãos no cortador de feijão, croft croft croft croft. “Ta quase pronto, Nego”. Caldo groso espirrando nas mãos. “Cadê a pimenta do reino. Será que acabou?. “Carlinhos, vai na casa de dona Elza e pede lá uma notinha de pimenta ”

“Notinha de pimenta”. Saia com isso na cabeça: Notinha. Era engraçado as coisas que ela dizia. Eu pensava na pimenta, em notinha. Tentava encaixar, ligar uma coisa na outra e não fazia sentido. Dona Elza fazia a ligação. Não perguntava o que era notinha. Agia natural como se soubesse: duas colheres no papel de pão, dobrava fechadinho, pacotinho. Notinha! .

Dona Elza freqüentava as mesmas palavras que minha vó. Não pensava no recado, não traduzia. Eu me sentia livre em dar recado de uma pra outra. Era só falar o que ouvi. E a comunicação estava feita. Fiquei pensando se notinha pudesse ser duas colheres, ou só uma pitadinha de nada. “Só tenho isso, menino”. Eram mais profundas as palavras que elas freqüentavam, porque raramente era o que parecia. Não era a quantidade de coisas, era algo mais da coisa mesmo. Notinha talvez fosse a própria pimenta.

E se ela falasse assim: “Nego , fala pra dona Elza mandar pimenta pra mim!” Pensava essa possibilidade no caminho. “Mande pimenta pra mim”. Tão direto, sem segredo, sem arte nenhuma, parece desrespeito, pedir Dona Elza pimenta desse jeito . Era como se tivesse o direito de pegar quantas pimentas quisesse. Não parecia minha vó pedindo emprestado, sem nada de mistério. Assim seria só pra fazer a gente comer, não seria pra alimentar. Porque notinha, deixava agente não só com a barriga cheia, mas com a imaginação mais rica. O cheiro e o gosto da pimenta parecia dosado ou incrementado pelo a forma como ela chamava.

Dona Elza mostrava entender muito dessas coisas. Já aconteceu de eu estar na hora da comida, e eu perceber o quanto de gosto que ela coloca nas coisas que fazia. Cantava umas músicas de reis, abria as panelas e ava uma mexedinha. Ria também, mas pra dentro. Se não tiver atento nem dava pra saber. Mas sinto inteira fazendo, num amor de mãe alimentando os filhos, e mostrando o quanto de seguro é estar perto dela.

“Só tem uma notinha de sol lá fora”. Foi algo que mudou muito depois dessa fala. Fiquei assustado, sem duvidas era uma descoberta. Não estava cozinhando, não mandou ir a casa de Dona Elza e nem se tratava de pimenta, Então notinha era outra coisa. Fiquei certa manhã perdendo muito tempo com essa questão: O que era notinha? Pergunte pra minha vó, mas ela não soube me explicar, riu da minha preocupação besta. Vi que ela falava muitas coisas que vem com uma intenção, mas de verdade mesmo, ela não sabia explicar. Não sabia dizer pra gente ou pra ela mesma o que fato queria dizer...

Notinha não estava nas coisas que ela falava, era algo fora da pimenta ou fora do sol ou da dona Elza. “Mande um notinha de pimenta”. Pedacinho talvez. “Notinha de sol”. “Notinha de noite”, não, de noite não, não combina, parece forçado. De noite não! Opa, de noite não pode, porque de noite é dificil ser só um pedacinho. Notinha de risada, parece que já dá. Notinha de fome, esse dá...

Depois apareceu outras palavras, com jeito assim, de acarinhar as coisas com os outros. Pra ficarem mais bonita, ou mais perto da gente. Se acaso minha vó falasse: “Fala pra dona elza mandar um pacote de pimenta”. Não falaria de amor, não entenderia que dona Elza precisa também ter pimenta. E outra coisa, não deixaria claro que pimenta é importante pra duas do mesmo jeito.

A gente comia com gosto, o prato feito, no chão entre as pernas, de longe sentia o gosto da pimenta, bem longe, era só uma notinha.