O BAGACEIRA

Uma dose de bagaceira e duas latas de cerveja.
Assim começava a noite de Rosmundo, conhecido nas “bocas” como Nego Bagaceira.
Antes de sair para a noite atrás de suas meninas, passou pelo banheiro. Precisava pensar e aliviar a pressão. Nego Bagaceira estava cismado com o faturamento de suas quengas... Tinha caroço nesse angu.
Pelo caminho, em direção à zona dos puteiros, Bagaceira ia matutando - As meninas estão de brincadeira, o arrecadado caiu por demais. A Japa era um fracasso, ainda mais depois que pegou aquelas berebas daquele gringo filho da puta. Fina, lá isso é nome de puta, mas Josefina é que não dava. Ela era boa de boca, mas envelhecera e mal fatura para minha comissão e pagar o quarto na hospedaria da zona. Leninha, sim, essa valia a pena, raramente ganhava pouco e não era gananciosa, se contentava com os quinze por cento e não chiava.
O problema era a Branca, um corpão daqueles e faturando uma merreca toda noite. Tá de sacanagem: está enfurnando a grana ou tá “dando” de graça. Apaixonada... Puta que pariu... Não tem nada mais besta que puta apaixonada.
Distraído nesses pensamentos, Nego Bagaceira virou a esquina e entrou na praça. Deu de cara com Branca sentada no banco debaixo da paineira enroscada com um mulato bem apanhado aparentando pouco mais de vinte anos. O esfrega e rola estava arretado.
- Oh! Minha deusa. Quem é vivo sempre aparece.
Branca saltou do banco, apavorada. Pelo tom da conversa de seu homem, não sabia se era elogio ou deboche. Na dúvida, achou melhor ficar calada.
- Ueh! Perdeu a língua ou o gato comeu? A pergunta agora era clara. A raiva estava estampada em cada letra da frase – Como é princesa, não vai me apresentar o novo cliente?
- Cliente, não. Retrucou o mulato – Sou noivo da moça e exijo respeito.
- Moça?... Noivo?... Bagaceira explodiu em gargalhadas... Após alguns instantes, Rosmundo parou, olhando para Branca não sabia se continuava a rir ou se quebrava a cara do moleque atrevido. Uma bofetada estalou forte no rosto de Branca. Sangrou boca, olho e nariz o ouvido zumbia feito colméia enfurecida. A quenga rodopiou no ar e estatelou-se no chão feito uma goiaba podre.
Antes mesmo de o mulato assustado desgrudar a bunda do banco, a peixeira de Bagaceira tinha feito o serviço. O sangue jorrava do bucho do infeliz. A segunda estocada atravessou a garganta e o sujeito despencou em uma imensa poça de sangue estrebuchando feito capado no matadouro.
Rosmundo agarrou Branca pelos cabelos, puxou-a para cima do banco e bem perto do ouvido que ainda zunia deu a ordem.
- Agora, tu vai cuidar de teu noivo... Depois trata de faturar... Vou ter que sumir por uns tempos... Mas volto...
Nego Bagaceira sumiu na noite pelas vielas que formavam um emaranhado de barracos, botecos e puteiros na zona de meretrício, na beira do cais.
Branca sabia que o reencontro seria inevitável e suas consequências, com certeza, as piores possíveis. Um arrepio fez estremecer a jovem que, sem perceber se urinara de terror.
Assustada com as sirenes das viaturas policiais, ela enfiou-se pelo capoeirão que separava os armazéns do porto e a região dos mangues.
Três semanas se passaram. A polícia investigou, fez perguntas. O de costume, ninguém viu nada, ninguém sabia de nada. Como não apareceu família para reclamar o corpo e o defunto carregava vários papelotes de cocaína nos bolsos, concluiu-se que o individuo deveria ser um vagabundo qualquer, não valia à pena perder tempo. A polícia tinha mais o que fazer. O mulato foi sepultado em cova rasa como indigente.
O olho de Branca ainda estava arroxeado, porém desinchara. O ouvido ainda zunia, mais pelo medo que pela agressão. A moça passara as últimas semanas escondida no barraco da tia na favela do Quebra-Mar, do outro lado do porto. Ela sabia que Bagaceira conhecia bem o local, mas sabia também do respeito que ele tinha pela tia, velha benzedeira a quem Rosmundo muito devia de favores. A velha tinha lhe servido de mãe e pai quando cumpria pena por assassinar a mulher que o traia com um sujeito grã-fino. Com esse ainda faltava acertar contas. Dali pra frente mulher nenhuma lhe passaria para trás. Essa jura, Rosmundo fazia segurando as mãos da tia de Branca quando a velha, em visitas, lhe levava cigarros e algumas garrafas de bagaceira, que só entravam na carceragem à custa de suborno muito bem pago. Esses produtos eram moeda de troca dentro da cadeia, agradavam os carcereiros e principalmente o diretor do pavilhão. Em pouco tempo, Rosmundo passou a ser conhecido como “Senhor Nego Bagaceira”.
Bagaceira estava passando um perrengue, fugir sem dinheiro é complicado. Comida só a que conseguia roubar no supermercado. Banho... Tinha tomado dois, de chuva. Banheiro para pensar e aliviar a pressão nem pensar... Porém o que angustiava era a falta da bagaceira, sua companheira inseparável desde a reclusão. Cachaça, não adiantava...
Existiam questões pendentes lá na beira do cais que careciam de certa urgência na resolução. Rosmundo embarcou no ônibus em direção a zona portuária. Tinha que ser hoje. Estava decidido, lá chegando resolvo do meu jeito.
- Bença, tia... Branca tá ai que sei... Cadê ela?
- Ói... Filho, no meu barraco num quero desavença nenhuma. Tá entendendo?
- Calma tia. Não vim arranja fuzuê nenhum. Só quero me acerta com Branca. Vim casar com essa safada e botar reio nela.
Branca saiu de trás da porta e agarrando Bagaceira pelo pescoço, beijava-o loucamente numa mistura de pavor, alegria, surpresa e desconfiança...
- Eu aceito meu nego... É lógico que aceito... Mas me diz uma coisa, tu num tá zangado mais eu, tá?
Rosmundo vestiu o paletó e antes de apertar a gravata no colarinho engomado, deu o último gole na garrafa de bagaceira. Agora sim, estava pronto para enfrentar o padre na igreja, onde Branca, formosa tal qual uma Porta Estandarte, o aguardava ainda desconfiada.
Bagaceira entrou solene rumo ao altar, transpirava um pouco, talvez pelo último gole ou, quem sabe, pela beleza da noiva. O certo é que chegou mesmo a vacilar. Parou, olhou em torno e deu mais alguns passos. Chegou ao lado de Branca, segurou e beijou suas mãos, cheirou longamente seus cabelos que caídos pelos ombros realçavam um rosto esplendoroso. Sussurrou algo ao ouvido da moça e disparou o parabelo que trazia no bolso. O barulho foi ensurdecedor, o vestido branco foi se tingindo de rubro e a noiva despencou sobre o genuflexório que estava à sua frente. O Senhor vigário desmaiou, o povaréu entrou em pânico e aos gritos corriam em todas as direções o que facilitou em muito o desaparecimento de Rosmundo.
Mais uma vez Bagaceira ganhou o mundo certo de que cumprira o prometido.
- Lá chegando resolvo do meu jeito...
Foram necessários nove anos para que o noivo assassino voltasse à terra natal nas bandas do cais do porto. Tinha saudades das quengas, da tia, do jogo de sinuca, da prosa fácil e inconsequente com a malandragem da praça e principalmente de suas meninas.
Ficou sabendo que uma gringa, de conluio com um sargento, era agora a nova dona do bordel, lá na favela do Quebra-Mar e que a tia de Branca havia morrido numa batida da polícia quando procuravam por Bagaceira no seu barraco.
- Cambada de bosta... Achar que eu ia me esconder logo na casa da tia da vítima... Só na cabeça de penico desses milicos de merda...
Bagaceira tomou uma cerveja e algumas doses de cachaça, a espelunca do boteco não tinha sua bebida preferida. De cara cheia rumou para a favela. Entrou no bordel, queria aliviar a pressão. Pediu uma dose de bagaceira. Quem serviu a bebida foi a própria dona. A gringa...
- Gringa porra nenhuma, tu é Branca. Cacete... Tu não morreu?
O sargento entrou no recinto com mais dois soldados. Branca segurou a mão de Bagaceira, deu um beijo em seu rosto, cheirou demoradamente seu pescoço, sussurrou algo em seu ouvido e disparou a arma que aprendera a trazer escondida entre as pernas.
O sargento ordenou. – Atira que é fugitivo da polícia.
Um fogaréu se abriu e uma fumaceira tomou todo o lugar. Quando a poeira baixou Bagaceira jazia no chão com uma garrafa em uma das mãos e um véu branco com manchas de sangue na outra. A gringa ajoelhou-se ao lado do cadáver e sussurrou em seu ouvido que nada mais podia ouvir...
- Oh! Meu nego, eu também resolvo do meu jeito...