Minha amiga
Não era possível evitá-la, sentou-se no banco do pátio entristecido. Apenas trocaram olhares hoje pela manhã. É bem melhor assim, chegar bem na hora para não ter tempo de conversar. Pôde perceber o quanto significava não ter que ficar olhando para ela o dia todo. Era um alívio. Quando em casa, lembrava-se constantemente, mas as demandas familiares interrompiam os devaneios, e lhe davam tempo para respirar.
Quando foi mesmo que se conheceram? Bem, no início do ano, indo para o colégio. Saía de casa, dobrava a esquina e andava bem devagar para dar tempo dela aparecer lá atrás. Passou a entender depois o porquê dela também apertar o passo quando o via, ainda um quarteirão antes. E ficaram nesse flerte caminhante por algum tempo... Alguns meses talvez.
Mochila nas costas, a boca ainda cheia, atrasado.Neste dia falou com ela pela primeira vez. O cachorro latia. Apressado, andando de costas e despedindo-se da mãe, chocou-se com alguém quase no meio da calçada. Virou-se. No momento exato a beleza era simplesmente arrebatadora. Era como uma foto perfeita, a luz, o vento, a posição. Mas não era só isso, era mais. Uma pintura perfeita. Engasgou-se com o resto do leite e dos cereais. Tossiu. A atropelada resolveu romper o silêncio:
- Engasgou?
Mas ele não podia falar, asfixiava-se. Ela estapeou-lhe as costas. Ele concentrou-se, tossiu forte e conseguiu falar com a voz rouca:
- Obrigado, estou bem, eu acho...
Depois de recuperado agradeceu timidamente. Ela entortou a cabeça para um lado, graciosamente, abriu um sorriso e prosseguiu.
Quando chegavam à escola, ela subia a rampa dos mais velhos, ele se submetia à rampa das crianças. Na hora do lanche, lá estava ela conversando com as amigas. Tinha algumas revistas nas mãos. As vezes se sentava ao lado das meninas no banco perto do jardim, e cochichavam mutuamente. Mexiam, penteavam, prendiam os cabelos umas das outras. Uma vez pegaram mania de ficar assobiando uma música qualquer, da moda. Essa música ficou impregnada na cabeça dele durante muito tempo. O sinal soava e os dois encaminhavam-se para suas respectivas salas. Neste retorno é que sempre se esbarravam. O jardim, o local preferido das meninas, ficava do outro lado da escola, perto da sala dele. Quando escutava o sinal não tinha pressa nenhuma, ia a passos vagarosos porque sabia que ela passaria com as amigas por ali. E passava. E olhava para ele. Mas desviava-se e voltava a conversar.
O hino das segundas-feiras era conflitante. A fila da turma dele ficava paralelamente à fila dela no pátio, de frente para a bandeira nacional. Possuíam praticamente a mesma altura, o que os levava a ficar lado a lado. Os cabelos dela eram lisos e alcançavam os ombros. Quando inclinava o rosto um pouco para frente, eles caiam de lado e pareciam fechar como uma cortina de teatro. Ela utilizava deste subterfúgio para não prestar atenção nele. Preferia ficar na dúvida. Será que ele está mesmo me olhando? As primeiras notas tocavam no auto-falante e ambos mantinham uma posição ereta. Centrados. Mas a necessidade de olhar para o lado para ver se o vizinho estava bisbilhotando era tão grande que o posicionamento quase militar não durava muito. Era no primeiro “entre outras mil és tu Brasil ó Pátria amada” que tudo acontecia. Ele fingia coçar a testa, ela ajeitava o cabelo e se admiravam rapidamente, disfarçando. Retornavam às suas salas, após o hino, com um sorriso de satisfação escondido. Um riso de felicidade: a recíproca era verdadeira.
Desceu os três degraus que levavam à varanda. Tomou a calçada como sempre e começou a vaguear a espera da sua inspiração, que a qualquer momento surgiria no horizonte logo atrás. Mas ela não compareceu. Dois, três, quatro dias e nada. No quinto dia, já preocupado, olhava para trás insistentemente. Cogitou comprar um espelho, pequeno, que servisse de retrovisor, retirando-o do bolso para não ter que se virar e confirmar a presença dela. Abandonou a idéia. No sexto dia, desceu e encostou-se no corrimão. Esperou. O cachorro insistia em brincar, aqui, ali, mordiscava a ponta do tênis dele, latia, pulava sobre seus joelhos equilibrando-se a seguir nas patas traseiras... De repente ela rompeu pela calçada... O susto foi grande, desequilibrou-se, bateu a cabeça no corrimão e caiu em cima do cachorro que rugiu de dor. Ela olhou penosa para o cão. Estava parada ali, observando o desastrado. Voltou a andar devagar, colocando a mão na boca para esconder o riso. Passou.
A cabeça doía, mas levantou rapidamente depois que ela sumiu, atravessando a rua e ganhando a via principal que levava à escola. Erguido, bateu nas roupas com as mãos para retirar a grama. O cachorro contorcia-se. Ele encarou o bicho e disse:
- Ta vendo o que você arrumou? - Abaixou e apalpou o dorso do cão, ainda estava inteiro - Entra já pra casa! - Gritou e pôs-se a correr para a aula.
Algum tempo depois descobriu que sua admirada tinha tido uma febre alta por aqueles dias e que teria ido até um hospital. Ficou angustiado. Pensou no pior. Mas com a volta da rotina, tranquilizou-se. Por pouco tempo.
Desta vez desceu os degraus com cuidado. Estava no intervalo correto, pontual. Aquele era um dia alegre. Olhou para trás, já perto da esquina, e não viu nada. Quando olhou pela segunda vez sentiu só um vento, como um raio, passando ao seu redor com velocidade. Recompôs-se e a viu, como uma flecha, a enfiar-se pelo caminho numa bicicleta amarela e rosa. Ora! Uma bicicleta! Fechou a cara e caminhou pesado. Ela estava estacionando seu veículo na frente da escola quando ele passou. Emburrado. Na hora do recreio foi sentar-se bem longe de onde ela estava. O mais longe possível. Ela o procurou, deixando as meninas e as revistas de lado. Percorreu o pátio, foi no laboratório, na cantina. Encontrou-o perto do jardim de infância. Ele analisava os pequeninos brincando e tropeçando.
- Ei! - Falou atrás dele - O que aconteceu?
Virou-se e, mesmo admirado, respondeu placidamente:
- Nada.
- Nada nada! Eu ganhei ela do meu pai. Foi meu aniversário ontem. - Sorriu.
Um problema maior aterrizou na consciência dele: não sabia se a parabenizava ou se exigia que largasse a bicicleta. Cruzou os braços. Depois estendeu um deles em direção a ela e falou:
- Meus parabéns, atrasado.
Apertaram as mãos. Foram dois segundos que ele quis transformar em dois anos. Mas um burburinho se fez atrás dela, eram as amigas, que a levaram de volta, no mesmo instante em que tocava o sinal.
Ela deixou a bicicleta. O diálogo entre eles já existia, mas ambos não sabiam disso. Nas manhãs de sol que se seguiram o comportamento continuou o mesmo. Se as árvores e os postes do trajeto até o colégio pudessem falar, diriam que os dois eram estranhos. No entanto, estes mesmos personagens estáticos da rua, testemunhariam o primeiro cumprimento civilizado dele para ela. Deu-se exatamente na esquina, trecho que ele percorria mais devagar, para que ela o alcançasse. Estava determinado naquele dia. Ele a esperou, literalmente, e disse:
- Bom dia.
Ela ficou um pouco surpresa. Mas feliz. Respondeu:
- Bom dia.
Bom dia daqui, bom dia de lá. Até os dias nublados ou chuvosos eram bons. A conversa toda não durava cinco minutos, entre comentários do tempo e detalhes da paisagem. Logo entravam no colégio e eram desconhecidos novamente.
Mais confiante, sentiu que poderia fazer um convite a ela. Afinal, já se falavam todos os dias. Terminou de se arrumar e saiu para encontrá-la. Desceu e esperou. Enquanto olhava para o outro lado, escutou um barulho estranho. Ela apareceu caminhando com dificuldade, apoiada em duas muletas. O gesso terminava quase na altura do joelho. Movimentava a perna parcialmente e tinha o rosto um pouco abatido. Ele correu em sua direção:
- O que houve? Me dá sua mochila...
- Eu caí ontem, em casa, quebrei o pé. Foi horrível!
E contou toda a história do acidente doméstico. Mas ele não conseguiu fazer o convite para levá-la a patinar no gelo.
Não se falavam na escola. Trocavam olhares e gestos. Certa vez ela queria avisar que eles se encontrariam na saída. Atirou-lhe uma bolinha de papel de uma rampa para a outra sem ninguém perceber. Nesse bilhete é que estava a letra dela. Nunca mais esqueceria esta escrita cursiva tão bela.
Não fizeram o caminho de sempre, entraram pela rua da praça e foram sentar-se ao redor do chafariz. Ela fazia uma brincadeira de imitá-lo desde que chegaram ali, e ele já se via irritado. Observava-o nervoso. Calou-se. Ouvia-se apenas a água do chafariz. Ela abriu aquele sorriso que fazia o coração dele disparar, segurou-o pela mão e disse:
- E se eu for embora? - Tomou um ar de seriedade.
- Como assim ir embora? Por que? - Desesperou-se, para não dizer que enlouquecia.
- Meus pais não ficam muito tempo numa cidade...
Explicou que a profissão de seu pai tinha esta característica temporária, já haviam morado em cinco locais diferentes. Enquanto falava, o outro embranquecia de pavor. Ao terminar percebeu que estava em um monólogo, pois seu ouvinte já estava paralisado. Tocou-lhe delicadamente a face, e o pediu que não perdesse as esperanças. Trancou-se no quarto quando chegou em casa. A mãe cansada de bater na porta, adormeceu. Ele permaneceu no pranto e no sofrimento.
Recuperado, vestiu o uniforme, passou as mãos no cabelo e saiu. Interceptou sua companheira na esquina. Chamou-a de longe e pediu que esperasse. Chegou bem perto, aproximando muito seu rosto do rosto dela, encheu-se de dignidade, mesmo trepidando e a pediu:
- Não me importa se você vai embora hoje, amanhã ou ano que vem. Peço apenas que não seja mais minha amiga. Seja minha namorada!
Entregaram-se naquele momento a um beijo apaixonado. Abraçaram-se. E foram caminhando em direção à escola onde não mais eram desconhecidos, nem amigos, mas namorados.