Porta retrato(EC)
Ela se livrou de tudo o que era dele. Deixou para trás quando saiu de casa em um fim de semana e não voltou mais. Tudo, não. Quase. Tinha levado na bolsa, o porta retrato. Uma joia. Pequena joia. Mal cabia nele uma foto 3 x 4 e era isso que ele portava: um pequeno retrato 3 x 4 que nem fazia justiça ao retratado – o homem que ela amou incondicionalmente e que um dia simplesmente sumiu. Ela o carregava sempre dentro do bolso interno da bolsa preta que quase nunca usava e por essa razão ele fora preservado. Ela nem sabia que ele estava lá, tinha se esquecido. Quando decidira ficar naquele lugar ermo abdicando de viver na civilização, pendurara a bolsa em um cabide atrás da porta e se esquecera dela também. Ali, onde passara a viver, nunca precisava de bolsa. Quando ia até a vila fazer compras, colocava a carteira dentro da sacola de compras que encontrara na despensa e isso lhe bastava. Mas pensava nele de vez em quando. No porta retrato, o presente que ganhara quando completaram um ano de relacionamento. Porque ele era lindo, o porta retrato. Delicado, verdadeiro trabalho de ourivesaria. Era retangular, a moldura não mais que a largura de um dedo, todo trabalhado com filigranas. No ângulo inferior direito, dois corações entrelaçados, pequenos rubis, como gotículas de sangue. Para marcar a eternidade de uma vida, ele dissera. E certamente a vida fora eterna enquanto tinha durado, pensou, copiando o poetinha.
Ela só voltou a revê-lo, o porta retrato, muito tempo depois, quando mais uma eternidade chegava aos finalmente. Estava arrumando a bolsa para partir, agora que voltaria a Civilização. Ou aos seus arredores, não sabia ainda o seu destino. Só sabia que mais uma vez precisava partir, para recomeçar. Fim de mais um ciclo, começo de outro, que nem ao menos se desenhava em sua imaginação. Olhou sem dor a imagem no porta retrato, esmaecida por anos de sombra. O rosto sério e bonito. Os olhos que um dia brilhavam por qualquer coisa. Os cabelos firmes na cabeça. Pensou no que fazer por algum tempo. Deixá-lo ali, com moldura e tudo ou deixa-lo ali em qualquer lugar, a espera de ser encontrado, por um rato talvez. Mas não pensou muito. A sombra de uma ternura passou pela casa, como um fantasma. Devolveu o porta retrato ao lugar onde estivera por tantos anos, no bolsinho esquecido dentro da bolsa preta. E agora, enquanto a paisagem passava por ela, trazendo novos caminhos, ela alisava a bolsa, com uma vontade enorme de rever o porta retrato. O retrato. A imagem, que teimava em dançar em sua mente, de um homem bonito e sério cujos olhos um dia, brilhavam por qualquer coisa.
http://encantodasletras.50webs.com/portaretrato.htm
Ela se livrou de tudo o que era dele. Deixou para trás quando saiu de casa em um fim de semana e não voltou mais. Tudo, não. Quase. Tinha levado na bolsa, o porta retrato. Uma joia. Pequena joia. Mal cabia nele uma foto 3 x 4 e era isso que ele portava: um pequeno retrato 3 x 4 que nem fazia justiça ao retratado – o homem que ela amou incondicionalmente e que um dia simplesmente sumiu. Ela o carregava sempre dentro do bolso interno da bolsa preta que quase nunca usava e por essa razão ele fora preservado. Ela nem sabia que ele estava lá, tinha se esquecido. Quando decidira ficar naquele lugar ermo abdicando de viver na civilização, pendurara a bolsa em um cabide atrás da porta e se esquecera dela também. Ali, onde passara a viver, nunca precisava de bolsa. Quando ia até a vila fazer compras, colocava a carteira dentro da sacola de compras que encontrara na despensa e isso lhe bastava. Mas pensava nele de vez em quando. No porta retrato, o presente que ganhara quando completaram um ano de relacionamento. Porque ele era lindo, o porta retrato. Delicado, verdadeiro trabalho de ourivesaria. Era retangular, a moldura não mais que a largura de um dedo, todo trabalhado com filigranas. No ângulo inferior direito, dois corações entrelaçados, pequenos rubis, como gotículas de sangue. Para marcar a eternidade de uma vida, ele dissera. E certamente a vida fora eterna enquanto tinha durado, pensou, copiando o poetinha.
Ela só voltou a revê-lo, o porta retrato, muito tempo depois, quando mais uma eternidade chegava aos finalmente. Estava arrumando a bolsa para partir, agora que voltaria a Civilização. Ou aos seus arredores, não sabia ainda o seu destino. Só sabia que mais uma vez precisava partir, para recomeçar. Fim de mais um ciclo, começo de outro, que nem ao menos se desenhava em sua imaginação. Olhou sem dor a imagem no porta retrato, esmaecida por anos de sombra. O rosto sério e bonito. Os olhos que um dia brilhavam por qualquer coisa. Os cabelos firmes na cabeça. Pensou no que fazer por algum tempo. Deixá-lo ali, com moldura e tudo ou deixa-lo ali em qualquer lugar, a espera de ser encontrado, por um rato talvez. Mas não pensou muito. A sombra de uma ternura passou pela casa, como um fantasma. Devolveu o porta retrato ao lugar onde estivera por tantos anos, no bolsinho esquecido dentro da bolsa preta. E agora, enquanto a paisagem passava por ela, trazendo novos caminhos, ela alisava a bolsa, com uma vontade enorme de rever o porta retrato. O retrato. A imagem, que teimava em dançar em sua mente, de um homem bonito e sério cujos olhos um dia, brilhavam por qualquer coisa.
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