Apenas Respire (Just Breathe)

“Apenas respire” dizia-me ele. Aquele com certeza era o último rosto que eu ia ver. O instante derradeiro. O desfecho de uma curta história de alguém que já nasceu para ser defunto. Pois todos nascemos assim, como futuros defuntos. A terra chacoalhava. As granadas estouravam mas eu podia ainda me ater aquele rosto. Pesado e sujo, as pálpebras se debatiam, os traços eram rijos, as lágrimas nos olhos teimavam em se acumular lá. Estavam prestes a explodir como as granadas.

Apertava a minha mão, e eu sentia seus ossos me pressionando. Podia escutar outros corpos caindo, alguns mutilados, outros elouquecidos de pavor, os gritos, os medos. O sangue que tingia os uniformes. Não estava desesperado, apenas contemplava aquele olhar de adeus. Não sentia mais os movimentos do meu corpo. Adormecia vagarosamente. O frio fazia-me tremer o queixo. A chuva não me deixava fixar, piscava os olhos velozmente. O rosto não desistia, estava lá, firme, inabalável. O clarões dos relâmpagos na trincheira iluminavam um cenário de matança. Os vivos não podiam suportar e alguns abandonavam seus corpos durante uma corrida em direção aos inimigos, recebendo cada bala, cada golpe. Amontoavam-se aqui e ali como se fossem pastos de abutres. Vomitavam rubro e se arrastavam contra seus destinos. Alvos fáceis! Pobres alvos fáceis! Berravam ordens de “abaixem-se”. Se houvesse uma só alma que antes de se levantar com seu fuzil para correr já não estivesse morta, já não estivesse purgando, esta alma seria santa. Aqueles que jazem no meio do nada, no deserto da morte, a estes a alma já havia sido levada há muito tempo.

Aqui não se vive, aqui “apenas se respira”. Enquanto mais um gatilho é apertado e mais um crânio é estourado. A lição está dada, a lição desta que já os condena desde a eternidade. Não pude mais encontrar o ar. Me faltou. Me faltou também e ainda me falta aquele rosto. Aquele último rosto que me ofereceu abrigo na guerra. Pereci assim, agarrado aquela imagem. A chuva, o cheiro de morte. As faces sujas do homem que acompanhou-me nas suas últimas lágrimas. Pois não tardou a ser chicoteado por um projétil que feriu-lhe o pescoço. Tombou ao meu lado. Enfim. Meu caso foi aos tropeços, as gotas da chuva ainda tentavam perfurar meu rosto, eu permaneci um longo tempo deitado, observando meu herói cadáver.

Os ruídos da artilharia cessaram, o dia estava amanhecendo e o sol declarava-se forte, imperador. A tempestade passou e o reforço chegava. Escutei os aviões, os tanques se aproximando. Findava-se a batalha e com ela a minha vida. E a cicatriz na minha alma agora é aquele quadro: o rosto negro de lama e profundo de doação.

Guilherme Pedrosa Lima
Enviado por Guilherme Pedrosa Lima em 05/09/2011
Código do texto: T3202096
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