Bolo de Aipim
Havia um lugarejo ao sul, onde a cidade morria. Morria em seu medo, em seu descaso, em seu silêncio... A cidade morria de sede, seca por carinho. Neste lugar, havia uma casa pequena, com paredes sujas e janelas quebradas. Ela tem um pequeno portão de madeira, com tinta branca velha, já descascando, e um jardim de flores murchas. Essa casa tem um tapete desfiando e um novelo de lã sobre um sofá gasto. Ao seguir pelo corredor da casa, se encontra uma cozinha escura, com um pequeno fogão a lenha, e um fogão a gás velho, de esmalte, com uma panela preta de ferro em cima. Tem um banheiro sem chuveiro, com um balde e um sabão em barra, uma bucha vegetal e um trapo de pano para secar o corpo...
Alí, meio misturado com todo aquelo restolho de coisas, largada de lado como a cidade e seus pequenos trapos, há um pequeno trapinho humano. Com seus quase noventa anos, traz um chinelo com as talas enfiadas em um prego, um vestido estampado, quase sem cor, e um encardido lenço nos cabelos já brancos. Suas mãos cansadas, tremem, e sua voz rouca falha. Na meninice, e até bem pouco tempo, ela arrumava a casa, aguava o jardim, cuidava do filho, que corria pelo quintal atrás das galinhas...
Trabalhou muito na roça, para ajudar a sustentar a casa. Depois, pro filho estudar, trabalhou de faxineira na escola, depois, na faculdade, quando o filho passava por ela, e jogava um papel de balas no chão, para que ela pegasse, não falando a ninguém quem ela era. A pobre não ligava, "coisas de criança", dizia pra si mesma, "logo passa". Mas nunca passou.
Ele cresceu, se formou doutor, e se casou com uma colega pediatra. Não a convidou para o casamento. Quando ela precisou de consulta, ele a atendeu, e colocou na ficha "caridade", e trocou o sobrenome da paciente.
Nasceu o primeiro filho do casal, uma menina. Ela nunca conheceu. Viu um dia vindo na rua com o pai, mas ao se aproximar, ele secamente disse que não havia trocados, e baixou o rosto como que envergonhado.
Agora, o mal de Alzheimer lhe deixava presa a uma vida sofrida, sem aguentar nem mesmo arrumar a própria cama. Vive da caridade dos vizinhos, que ajudam a preparar a comida. É bem verdade que ele nunca deixou faltar o arroz com feijão, que compra escondido da esposa (que pensa que ele é orfão), e manda um boy da clínica médica entregar.
Já faz 10 anos que ela não o vê. Sentada em seu sofá, ela tricota mais uma das muitas blusas para a neta, imaginando qual o tamanho que ela deve vestir agora. Faz isso todo ano.
Um dia, ele sonhou que estava pobre e sozinho no mundo, e só restava uma voz suave, meio rouca, que dizia: "Deus, que meu filho me ouça chamar, e venha me ver, para que eu possa o ajudar como sempre. Me dê novamente saúde, para poder ajuda-lo quando de mim ele precisar!" Ele acordou assustado. Esse sonho se repetiu várias vezes. Um dia, além dessas palavras, ouviu aquela voz, tão conhecida pra ele, a mesma que lhe cantava cantigas, chamar claramente seu nome. Resolveu ir até aquela casa pequena e pobre. Ao chegar na porta, teve receio. Depois de tanto tempo, ela nem deve mais se lembrar dele. E se lembrar, deve ter muita mágoa, pois ele a abandonou.
Mas como se adivinhasse, ela apareceu na porta. "Boa tarde Antônio, entra. Fiz um bolo de aipim, do jeito que você gosta, pois sabia que você vinha".
"Como assim sabia?" Perguntou surpreso. "Nem mesmo eu sabia!"
"Faço isso a dez anos. Não tenho mais forças para bater a massa, mas peço a vizinha que faça isso por mim. Por dez anos espero que você venha, rezo e chamo seu nome. Emfim você me ouviu". Tome esse suéter, pra sua filha, e esses são todos os presentes de aniversário que não dei."
O homem ficou surpreso. Conhecia bem a doença de sua mãe, e esperava encontra-la como um bebê.
Ela levantou-se, e pegou uma mala de fotos, e disse a frase que explicou toda a vida para aquele homem: "Meu filho, que bom te ter de volta"
Durante toda sua vida, ele procurou fazer o que os outros achavam correto para se obter sucesso. Mas ele se esqueceu, que de nada vale o sucesso, sem ter com quem dividí-lo, e que acontecesse o que fosse, aquela casa sempre estaria esperando por ele, e sempre haveria um bolo de aipim no forno. Ele chorou amargamente, e saiu pela porta.
"Onde vai meu filho?"
"Vou buscar minha esposa, e sua neta. Elas adoram Bolo de Aipim!"
Escrevi em 2008. Não me lembro o contexto, e trata-se de um personagem fictício.