DONA ALZIRA

PUBLICADO NO LIVRO "TEMPO DE TUDO" CONTOS

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Ela descia a rua. Já era quase noite e o sol já havia se posto há algum tempo. O frio da noite começava a incomodar os moradores daquela pequena cidade. Havia chovido durante toda a manhã daquele fim de inverno. Todos já haviam deixado o local e Dona Alzira ficou um pouco mais e rezava compulsivamente. O terço de contas de madeira, abençoado pelo Pe. André rodava em suas mãos desenfreadamente, num excessivo rezar pela alma de seu querido Cassimiro. Ele acabara de ser sepultado naquele pedaço de terra, da cidade que escolhera como morada.

Dona Alzira estava incontida em sua dor e parecia ter perdido o caminho do cemitério até sua humilde casa, próxima à bela igreja de Santo Inácio. Nada naquele lugarejo era distante. Bela Vista de Santo Inácio é uma pequena cidade com menos de três mil habitantes. Na verdade um lugarejo perdido, no sopé de uma montanha imponente. As construções são quase todos do período colonial, com ruas calçadas de enormes pedras e casarões tricentenários. Um riacho corta a cidade ao meio com uma pequena correnteza que pode ser vista da ponte de pedra, feita pelos escravos que liga o largo de Santo Inácio ao restante do lugar.

Dona Alzira é a zeladora da Igreja. Cuida com um carinho extremamente esmerado da casa de Deus. Troca diariamente as flores que ela cultiva no jardim do adro e ainda tem forças, no auge dos seus oitenta e sete anos, para passar um paninho tirando a poeira dos bancos. A limpeza ela não consegue mais fazer, apesar dos seus quase trinta anos de dedicação. Pe. André contratou uma faxineira para esse serviço, mas Dona Alzira faz questão de estar presente e fazer tudo o que ainda consegue. Sempre meiga, sorridente, bondosa e atenciosa com todos, hoje, no entanto, ela não conseguiu fazer nada. Ficou toda a madrugada e o dia inteiro ao lado de Cassimiro, vítima de complicações cardíacas.

Os sinos da igreja silenciaram em respeito à sua dor. Tocaram apenas o dobre de defunto pela manhã e calaram-se no costumeiro dobrar que convida os fieis para a missa vespertina. Toda a cidade acompanhava a dor de Dona Alzira e quase todos compareceram no cemitério. Ela ficara imóvel diante do último adeus ao seu marido de tantos anos. Seus olhos estavam por demais vermelhos e inchados das lágrimas tantas que ela havia derramado.

Eu não a acompanhei até o final. Enquanto jogavam terra sobre o fraco caixão ela ficou lá. Parecia insensível ao frio intenso e à nevoa que cobria a cidade. Ela rezava silenciosamente diante do amontoado de terra fresco que cobria para sempre seu amado. Foi inútil pedir que ela retornasse, ela queria ficar até mais tarde e pediu que os poucos amigos que ali restavam fossem para suas casas. Fiquei na janela observando a rua silenciosa que acolhia mais uma noite com seus postes de parca luz que deixavam o clima ainda mais melancólico naquela última semana de agosto. Foi quando vi aquele corpo encurvado descendo a rua, carregando nas costas o peso de uma vida sofrida, trabalhosa, que se esforçou para ensinar crianças na única escola da cidade, onde também educou seus cinco filhos que neste momento já partiram para suas egoístas vidas fora de Bela Vista de Santo Inácio. Ela agora estava voltando para casa onde continuará a viver os últimos tempos de sua vida na mais completa solidão. O frio provavelmente era a última de suas preocupações. Ela sofria de diabetes crônica e já estava com a visão bastante afetada. Dona Alzira partia agora para seu exílio espiritual.

Era possível perceber por seus passos lentos que ela estava acometida de uma dor interminável. Ainda ontem os dois assistiram juntos à missa das 18 horas e voltaram para casa como faziam todos os dias. De seus olhos corriam lágrimas silenciosas como que a esvair sua alma de dentro de si, arrancando-se a si mesma em um impulso irracional de descontrole do sentimento da perda, que humano algum consegue suportar. Uma voz sufocada, doída, profundamente repleta da mais intensa agonia. Dona Alzira entrou em casa e acendeu todas as luzes. Deitou-se na cama que ontem dividia com ele e chorou o choro de todas as pessoas que perdem alguém.

Fiquei imóvel em minha casa observando aquela mulher que padece dificuldades tantas. Mãe zelosa, mulher fiel, devota incondicional, agora ali, sofrendo, padecendo do mal único que é irremediável e contra o qual nossas forças são por demais incapazes de vencer.

Perdido em meus pensamentos, cochilei já madrugada adentro e me dei conta que devia ir dormir. Num último instante, observo a rua vazia, as torres da igreja e ao fundo o casarão de Dona Alzira. Ainda estavam todas as luzes acesas. Talvez fosse aquela a única luz que a iluminava naquele instante. Fui me deitar também com uma profunda dor no peito, compadecido daquela senhora. Fiquei a imaginar: um dia eu sofrerei essa dor. Meu Deus guardai-a, consolai-a, amparai a todos nós nas horas mais difíceis de nossas vidas. Que no apagar das luzes, a esperança e alegria possam ser o sol de nossa existência. Que o sol chegue ainda esta madrugada para Dona Alzira, por mais difícil que seja, e iluminai aquela alma machucada, ferida, solitária na madrugada da dor, da perda, da solidão...

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 02/09/2011
Reeditado em 15/10/2011
Código do texto: T3197701
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