Nasce uma estrela

Gerusa vive de escrever. Começou há pouco mais de cinco anos e já publicou vinte romances de sucesso, todos narrando as aventuras (e desventuras) sexuais de uma jovem beldade do interior na capital. Pornografia pura; tosca, mas muito popular.

Na verdade o nome dele é Wander, mas todo o mundo o chama pelo pseudônimo de Gerusa (que aparece sempre grande, em letras vermelhas e brilhantes, nas capas dos seus livros). Eu mesmo, que o conheço desde moleque, não consigo mais chamá-lo de Wander. ‘O Wander é escritor’, ‘o Wander gosta de ler’, ‘o Wander...’. Não, não consigo. É Gerusa e pronto, não tem jeito.

Mas ele não é gay não. Teve muitas mulheres na vida, todas loucas por ele. Uma até tentou matá-lo. Paixão doentia. Um tiro só. Pegou de raspão.

Ele é muito boa pinta, simpático e cheio de gogó. Mas não é só isso não. Dizem que ele tem um olhar “penetrante”, um sorriso “encantador”, que “enfeitiça” e “enlouquece” as mulheres; mas isso eu não sei. O que eu sei é que ele sempre gostou de ler, e que nas suas cantadas ele usa citações tiradas de romances cor-de-rosa vagabundos ou de revistinhas de sacanagem.

Mas hoje ele está firme com Sandra, uma negra cheia de vida, bonitona, daquelas que andam orgulhosas pela rua com o nariz empinado, colocando a maioria das mulheres no chinelo.

E se Gerusa conseguiu escrever seus primeiros romances de sucesso e sair da miséria para o estrelato foi por causa de Sandra, que deu a ele a chance de se isolar do mundo por dois anos, só para escrever, o dia inteiro, com quatro refeições, exercícios físicos moderados e bons livros para ler à noite.

Antes disso ele até tinha tentado escrever, mas a pressão para que trabalhasse (no sentido de ganhar dinheiro) era insuportável. Até a mãe dele o chamava de vagabundo. O pai dizia que ia limpar a bunda com as porcarias que ele escrevia. E uma vez a avó de oitenta e dois anos, com Alzheimer em estado avançado, ao vê-lo se aproximar da sua cama para lhe pedir a benção, deu-lhe uma bofetada na cara e disse “Vá trabalhar vagabundo!”.

Depois disso as cobranças aumentaram ainda mais. “É tudo em cima da coitada da Sandra”, “Ela lava, passa, faz comida e ainda trabalha fora pra sustentar aquele marmanjo”, “Ele faz o quê afinal?”.

Mas Sandra o amava e não cobrava nada dele. Ela lia seus contos e até dava algumas ideias interessantes, apimentando as cenas de sexo com um toque especial, só dela. Ela acreditava nele. “Um dia você vai ser famoso, Wander, e a gente vai sair dessa miséria”, ela dizia. “Mas como, Sandrinha? se com o peso dessa miséria nas costas eu nem consigo escrever direito!”.

Ele se desesperava.

Até que um dia Sandra teve uma ideia.

Conversou com um primo dela, o Orlando, um jovem advogado inescrupuloso, e com a ajuda dele arquitetou uma trama diabólica.

Gerusa ouviu a explicação dos dois com muita atenção, concordou com tudo, e já na semana seguinte entrou em ação.

Era domingo.

Fazia muito calor.

Sandra tinha combinado de tomar conta da avó de Gerusa, para que a família fosse passar o dia numa cachoeira da região.

E lá estava Sandra no fogão, preparando um mingau de aveia para a vovó, quando Gerusa entrou no apartamento com uma pistola automática na mão, gritando “Vou te matar, sua desgraçada”, e a vovó, assustada, ouvindo os gritos do neto, gritou mais alto ainda: “Vagabundo, vagabundo!”.

Um vizinho ouviu tudo e ligou para a polícia, que chegou em menos de quinze minutos.

Estava armado o circo.

Redes de TV foram informadas e começaram a anunciar: “Homem de trinta anos invade a casa dos pais e faz esposa e avó de reféns”.

(A arma ele tinha conseguido com bandidos no morro. Mercadoria boa. Uso exclusivo das Forças Armadas).

Ele não podia demorar ali dentro, nem ficar na janela dando sopa para os atiradores de elite. O que ele tinha que fazer era só chamar a atenção da polícia e se entregar. As instruções de Orlando e Sandra eram claras nesse sentido.

Orlando seria seu advogado. A perspectiva dele era muito boa: “Não tem como dar errado, Wander. Por esses crimes eu consigo para você uns quatro anos na penitenciária local (que, como você sabe, é quase um hotel três estrelas, principalmente para escritores pé rapados que querem se isolar do mundo como você). Mas como você vai se comportar direitinho, não vai pegar mais que dois anos, com certeza. Dois anos eu te garanto. Vou dar um jeito para você não trabalhar lá dentro, ficando com o tempo todo livre para ler e escrever. Ah! E vou te emprestar meu notebook”.

Perfeito.

Ele então se entregou, foi julgado, condenado e levado para a penitenciária.

Café da manhã, almoço, lanche e jantar, tudo de primeira qualidade, com nutricionista e tudo. Enfermeira, psicóloga e assistente social à disposição. E se precisasse de atendimento médico na cidade, passava na frente de todo o mundo que estivesse na fila (questão de segurança). E o melhor: uma cela só para ele. Não precisava trabalhar, e ainda tinha autorização para utilizar o notebook e receber de fora livros variados (diferentes dos que eram disponibilizados pela biblioteca do presídio), trazidos por Sandra de quinze em quinze dias: contos de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, romances policiais de P. D. James, Dorothy L. Sayers e Agatha Christie, e, é claro, o que havia de mais obsceno em literatura pornográfica no mundo (para inspirá-lo em sua faina rumo ao sucesso).

Gerusa escrevia o dia inteiro, todos os dias, quase sem parar, produzindo intensamente. Seu primeiro romance ficou pronto em sete meses: “O diário secreto”.

Sandra visitou várias editoras oferecendo o manuscrito, até que, finalmente, uma delas resolveu publicá-lo. As vendas foram fabulosas. No segundo mês após a publicação, o livro já estava sendo traduzido para o inglês, francês e espanhol.

E logo vieram os dois livros seguintes, que ficaram na lista de best-sellers por vários meses, chegando até a ultrapassar Paulo Coelho.

Porém, nos primeiros meses de prisão, o sucesso lhe parecia algo ainda muito distante e nebuloso. Ele chegou até a pensar em um plano para voltar depois, caso não conseguisse se tornar um escritor famoso. “Talvez eu precise de mais tempo”, pensou, “e para isso o crime tem que ser mais grave, alguma coisa que me garanta pelo menos cinco anos aqui... Cinco anos... Mas é claro! Se eu matar um pobre coitado, um Zé ninguém, talvez o Orlando me consiga uma condenação de no máximo dez ou quinze anos (que, com as leis deste país, viram cinco na maior facilidade). Cinco anos... Em cinco anos eu escrevo vinte romances!”.

Mas não foi preciso matar ninguém. Em dois anos e três romances, Gerusa tinha se tornado um escritor de grande sucesso.

Cumprida a pena, na saída do presídio, os fãs se aglomeravam do lado de fora gritando GE-RU-SA, GE-RU-SA. Até a vovó estava lá, na cadeira de rodas, rindo, a boca toda ferida de estomatite, babando horrores. Algumas mulheres exibiam os seios para ele, tremiam suas línguas sebosas e ofereciam-lhe os traseiros roliços; mas seus olhos só procuravam uma pessoa: Sandra.

E lá estava ela, de óculos escuros, encostada num carrão importado, toda sorridente. Ao vê-la, Gerusa caminhou feliz em sua direção, já pensando na vida que levariam a partir daquele dia: viagens, festas, carros, homenagens...

Pois é...