LUZ NUMA TAÇA DE VINHO
Naquele momento tudo o que me ocorreu foi olhar para a taça de vinho tinto que reescrevia a poesia da luz proveniente da vela tremeluzente na mesa do bar.
Ela tinha acabado de me dizer que iria embora. Que não me amava mais e nosso casamento tinha terminado para ela.
Como num passe de mágica, alguém trocou o cenário e meus pés mal conseguiam fazer com que minha cabeça alcançasse a pilha de travesseiros colocada atrás do roupeiro. Foi ali que, na minha infância, eu tinha abafado o choro proibido da primeira perda de que me lembrava. Daquela vez, meus cinco anos não tinham explicação para o aperto na garganta e a dor na boca do estômago. Tudo o que eu sabia era que ela tinha que ir e talvez não voltasse. Por alguma razão ela se despediu de todos da família, menos de mim. Pela fresta da porta entreaberta do quarto vi quando ela estendeu a mão para meu pai, depois para minha mãe, virou as costas e desapareceu na contra-luz do vão da porta de saída da casa. Enfiei de novo a cabeça entre os travesseiros e chorei as últimas lágrimas permitidas. Por muitos anos permaneceu a ausência, mas todas as lágrimas dedicadas a ela ficaram retidas no algodão das fronhas dos travesseiros de trás do roupeiro.
Afastei o prato intocado e rocei com o dedo a taça de vinho pa-ra desfazer o encanto das luzes que teriam sido um verso de amor se a vela fosse uma lua e o encontro fosse a bandeira da paz espalhada na mesa como a toalha do reencontro.
Tinha sido esta a motivação que me havia levado ao restaurante.
- Precisamos conversar – tinha dito ela – mas longe das crianças, para não sermos interrompidos.
- Sexta, combina com a empregada para que durma aqui e saímos para jantar.
- Tá bom. Combinado.
Foram dois dias de paz e expectativa.
Há muito estávamos distantes, incomunicáveis. Tínhamos recolhido os Embaixadores e a guerrilha estava evidente em todos os momentos de encontros. As razões eram irreconciliáveis. As verdades absolutas se espalhavam pela casa e a tesão, desde tempo, tinha pedido asilo político em países vizinhos, oportunamente oferecidos para conciliar o conflito.
A proposta de um jantar a dois tinha-me soado como um pedido de trégua.
Deixei as armas de lado, sugeri o prato que ela gostava, pedi um filé à Chateaubriand, aprovei o vinho e, com voz desprovida de qualquer defesa, provoquei o diálogo.
A luz de uma vela que atravessa um copo de vinho tinto pode mudar de nuances, dependendo do jeito como se olha para ela. Pode mudar, também, de como está o coração de quem a olha.