Cansativa Rotina

Os olhos encheram de lágrimas, assim que surgiu na mente sua própria imagem sem marcas escritas pelo tempo, um tempo que as coisas pareciam fáceis, quando se via e vivia amor, em que tudo que queria era justiça, música e mais um cigarro. Tempos passados, a muito, deixados para trás, não guardava fotografias dessa época, preferia geralmente não lembrar, lembranças machucam, muito, principalmente se forem de tempos bons, de tempos em que bastava viver, sorrir e lutar, que um passo valia por três mil. Agora ali, deitada – jogada – no sofá da sala, a televisão transmitindo imagens desconexas, o som ligado em uma rádio que tocava músicas antigas, o velho elepê do Beatles, um livro no colo, o cigarro na boca, o copo de whisky na mão, os olhos inchados de duas noites mal dormidas, o cabelo espatifado de dias sem ver o pente, ali, jogada no velho sofá que fora outrora de sua mãe, com diversos elepês espalhados pelo tapete despelado da sala, a porta escancarada, não se lembrava se esperava alguém, não que importasse, ali, jogada, se via tão velha e tão jovem ao mesmo tempo, velha fisicamente, e jovem espiritualmente, não que tivesse alma de menina, de forma alguma, que graça havia nessa idéia, tinha alma cansada sim, mas nova, jovem em ignorância, percebera, ali jogada como um trapo velho, em um sofá desconfortável, que não aprendera nada, não descobrira nada, tinha uma alma pobre, podre, cansada, enjoada, perdida. Sentia a primeira lágrima escorrer pelo rosto, atravessou a dura caminhada, repleta de buracos, até cair sobre a página do livro que carregava, um livro que ganhara, de quem não lembrava, mas sabia que a pessoa a amou, pelo menos era isso que estava escrito no interior da capa, “Com amor, L.T.” quem era “L.T.” é que não lembrava, provavelmente um dos namorados, um daqueles para qual ela repetia o mesmo discurso, “Te amo, eternamente”, engraçado como o eterno se tornou tão pouco tempo nos últimos anos, um eterno que durava alguns meses, alguns dias, era tudo mentira, tudo não passou de mentiras que saiam sem nem ao menos deixar o rosto arroxeado, desde os “te amo” até os “parabéns”, desde o “estou bem” até os “como vai?”, fora tudo uma mentira, o que dirá os “eternamente”, eterno era um bosta, nada era eterno.

Os cães do vizinho ladraram, gritaram todos juntos em um mesmo coro, berrando, deveria ser o carteiro, ou o lixeiro, ou o leiteiro, ou uma criança que passava na rua com uma bola de plástico, ou qualquer coisa que interessasse os cães, não ela, não, ela era completamente desinteressada, em o que quer que fosse, ela não tinha interesse, nem em levantar, nem em ir dormir, estava cansada de tudo aquilo, levantar as seis, escovar os dentes, tomar um banho gelado – para acordar – um gole de café frio, pegar o casaco e a bolsa jogados em cima do sofá desconfortável que fora de sua mãe, calçar os sapatos pretos, atravessar o quintal sujo e repleto de mato, abrir o portão – soltar o arame que o segurava a viga do portão – sair, pegar o ônibus chegar ao trabalho as nove, sair as seis, correr para pegar o ônibus, chegar em casa, abrir o portão, atravessar o quintal cheio de mato, abrir a porta, entrar, tirar o sapato preto, jogar o casaco e a bolsa em cima do sofá desconfortável que fora de sua mãe, e se jogar nele, passar o máximo de tempo possível ali, só levantar quando a boca seca implorasse por um copo do whisky barato e todas as partes do corpo insistissem no cigarro, então levantaria, ligaria a televisão, pois o controle havia quebrado já a tempo, colocaria o rádio para falar, e um elepê para tocar, pegaria o maço de cigarro e o isqueiro da bolsa, enxeria um copo de whisky, colocaria quantas pedras de gelo conseguisse, e tomaria devagar, sentido gosto imperfeito e sem álcool suficiente descer pela garganta, uma tragada demorada no cigarro, uma tosse indesejável, jurar que pararia de fumar, amanhã, sempre amanhã, dormir ao som de um rock lento o mais antigo possível, acordar as duas horas da manhã achando ser seis, deitar na cama de jeans e dormir o que lhe resta de noite. Mas não era só a rotina que a cansava, não, as pessoas a cansavam, todas com suas verdades inverossímeis, com seus sonhos possíveis, suas loucuras prováveis, marchando em direção a um futuro tão parecido com um presente, todos aqueles rostos desconhecidos, seguindo o script de um mesmo filme de comédia – ou drama – sendo assistidos por um estranho dito piedoso, uma criança brincando com seus bonequinhos de carne e osso, bonecos que acham que são livres, que acham que pensam, definitivamente, aquilo a cansava, tudo a cansava, respirar a cansava.

Levantou do sofá, estava na hora de por fim em tudo aquilo, acabar com aquilo era a única maneira, só existia um modo de se ver livre, foi ao banheiro, abriu o armário, entre as pastilhas de menta e as amostras de perfumes estavam o vidro de analgésicos, o de calmantes, e a tesoura, pegou o que lhe serviria, a tesoura, voltou para a sala. Começou com um pequeno corte, quando percebeu que não lhe causou dor alguma, fez um maior, até poder ver o interior, cortou com toda a força, como se estivesse estripando um animal perigoso, matando um assassino, quando achou que já estava bom, sentou, no chão, com o recheio em volta de si, com uma única ideia na mente, teria que comprar um sofá novo.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 31/08/2011
Reeditado em 01/09/2011
Código do texto: T3193405
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