TEMPOS DE MENINA

O misto de Isidoro avançava lentamente pela estrada de terra...

Eram os anos 1950, e o destino era a praia onde costumavam veranear. Na carroceria, junto com todos os apetrechos necessários para aqueles dias de férias, a criançada exultava. O coração de Emília era pura ansiedade: o desafio era saber quem primeiro avistaria os morros vermelhos da praia:

- Fui eu! – dizia Emília.

- Não, fui eu! – gritava outro. Como se todos não os tivessem visto ao mesmo tempo.

Depois de avistados os morros, crescia a expectativa, a alegria tomava conta de todos e o desejo era correr para o mar, andar, pé no chão, naquela areia fininha, molhar os pés na água salgada, esperar à tardinha as jangadas que traziam o peixe fresco, e à noite, enquanto o caseiro preparava e salgava o peixe no quintal da casa, ouvi-lo contar as histórias de pescadores.

As noites eram escuras, iluminadas apenas pelos milhões de estrelas e, se houvesse sorte, pela lua cheia. As crianças se divertiam a procurar o Cruzeiro do Sul, as Três Marias, a Estrela Dalva, a esperar alguma estrela cadente que surgisse, mais rápida que uma flecha, cortando o céu num relâmpago: quem as visse teria a sorte de realizar um grande desejo, mas o que poderiam desejar aqueles pequenos corações? E Emília deixava correr solta sua imaginação, sonhando quem sabe com um pequeno príncipe ou com as fadas encantadas que conhecia de tantas leituras. Mas dormia-se cedo, pois, pela manhã novas aventuras as aguardavam. Agora o desafio era ver, pelas frestas das portas, o dia amanhecer. Era preciso aproveitar todos os momentos, brincar na areia, subir os morros para procurar areias coloridas, esperar o homem que passava vendendo tapioca, cuscuz, cana de açúcar. A cana era preciso descascar e cortar em pequenos roletes, que por sua vez eram partidos em quatro palitos, função que seu pai fazia com perfeição. À tarde, era a vez do grude, do cavaco-chinês, do quebra-queixo, aquela geleia de coco durinha e tão gostosa. Sem falar nas deliciosas cocadas.

Emília adorava passar suas férias ali. Sua imaginação de menina tecia sonhos que se concretizavam em castelos de areia, em passeios pelas redondezas explorando aquele ambiente cercado de doces mistérios: os olhos d’água que formavam pequenos córregos, as encostas dos morros que se transformavam em cavernas, tudo era mágico e encantador.

As casas de praia, naquele tempo, não possuíam eletricidade. A geladeira, importada, funcionava a querosene, que era também o combustível para se produzir a luz nos velhos faróis de ferro. Só depois apareceu o lampião a gás, conhecido como lâmpada Coleman. Acendê-la era atribuição exclusiva de Seu Francisco, pai de Emília, pois era uma operação complicada: no interior do bloco de vidro acoplado ao pequeno bujão de gás havia uma espécie de rede. O pai acendia com um palito de fósforo essa rede, ajustava a intensidade da luz e a pendurava em um gancho que pendia do teto. Havia telefone, mas era acionado a manivela e respondia no posto telefônico, e à telefonista era solicitado que fizesse a ligação para o número desejado.

A preparação para aqueles dias era difícil, pois era preciso levar de tudo. Não havia onde se comprar quase nada naquela pequena vila. Dias antes já começavam os preparativos para a viagem. Os adultos encarregavam os filhos de separar as roupas mais velhas para poderem brincar na areia à vontade, o maiô para os banhos de mar. Era feita uma grande feira, pois se faltasse alguma coisa era difícil adquirir depois. Comprava-se a carne de sol, os cereais, latas e latas de leite condensado, que eram dissolvidas em água quente para se fazer o leite das crianças. De vez em quando se ia a uma pequena propriedade em que havia uma vaquinha e se tomava o leite mugido, mas era preciso acordar cedinho, pois era uma boa distância a pé.

O que salvava a criançada era uma pequena venda que havia em frente à igrejinha, de uma velha senhora chamada Dona Branca, onde se encontrava o melhor doce de caju das redondezas. Ali eram vendidos também os confeitos, como eram conhecidas as balas de goma.

E passavam-se os dias, naquela vidinha mansa, entre banhos de mar e passeios aos morros de areias coloridas. Os mais velhos faziam a sesta deitados em redes na varanda, devorando seus livros nas horas vagas e deixando soltos os meninos, que bem sabiam aproveitar aquela liberdade. A casa era uma festa. Às vezes à família de Emília juntava-se a de um tio com seus filhos e era grande a algazarra. Mas, naquele verão uma sombra negra iria baixar sobre toda aquela paz.

No anoitecer daquele dia, chegou o vizinho com a notícia:

- Estão comentando lá por cima que houve um acidente nos morros com um dos filhos do Seu Joaquim. O menino caiu num buraco e a terra caiu por cima dele.

Emília estava na varanda e ouviu tudo. Seu coraçãozinho ficou sobressaltado: será que o menino havia morrido? Ela nunca tinha visto um menino morrer. Ouvia dizer que os meninos que morriam se transformavam em anjos e iam para o céu. Mas esses assuntos de morte dificilmente eram comentados na frente das crianças, o que tornava tudo muito misterioso. Como seria morrer? E morrer assim tão pequeno, será que doía? Mas a dor maior era de quem morria ou era do pai e da mãe? Ela sabia que quem morria não voltava nunca mais... Quando se deitou, o sono demorou a chegar. Pensava que as crianças não deviam morrer. Como poderiam morrer se nem haviam crescido, se nunca iam saber como era casar e ter filhos... Pensava na dor daquela mãe. Pensava na dor de sua mãe se ela ou uma de suas irmãs morresse... Pequenas lágrimas escorreram por sua face e ela se lembrou de rezar:

- Nossa Senhora, tenha pena dessa mãe e não deixe seu filhinho morrer... Proteja todas as crianças do mundo, eu lhe peço.

E assim, rezando, rezando, o sono chegou. Pela primeira vez Emília teve pesadelos: sonhou que caía num buraco fundo, fundo... Tentava em vão se agarrar a alguma coisa, mas afundava cada vez mais...

O dia amanheceu nublado. Uma chuva fininha molhava os campos e parecia chorar aquela pequena vida que se fora.

- Sim, o menino subiu para o céu - Emília ouviu sua mãe dizer na hora do café.