LUA EM JÚPITER

Não sei como tudo aquilo começou, mas sei que a Lua não estava em Júpiter e isso não tinha a menor importância para mim. O que havia de concreto no Universo é que eu estava ali aquecido, alimentado e protegido por Ela. Podia sentir o coração dela batendo em algum lugar perto de mim e por meu corpo percorria um tipo especial de calor que não se mede em graus, mas em intensidade de prazer. Eu estava feliz. Eu realmente estava muito feliz. Às vezes eu percebia, pela batida do coração, que Ela estava triste. Não que diminuísse ou aumentasse o ritmo, mas o coração batia de um jeito diferente. Essa situação podia durar muito tempo, não sei dizer quanto, pois aprendi a medir o tempo somente mais tarde. Um dia, percebi que as batidas do coração estavam do jeito triste, mas com uma intensidade maior: havia dor, Ela estava sofrendo! No mesmo instante passei a sentir um incômodo muito forte na altura do estômago. Foi aumentando e, pela primeira vez, entrei em contato com a dor. Imediatamente, fiquei tonto e tive uma enorme vontade de dormir. Era dor e, também pela primeira vez, era medo. Aos poucos tudo se transformou num formigamento pelo corpo e a dor foi passando, passando... Não lembro o que houve depois. Também não sei dizer quantas vezes isso se repetiu. Sei que foram muitas e, gradativamente, o amortecimento surgia de forma mais rápida e a dor era menor.

Com o tempo, as sensações de calor prazeroso começaram a escassear e passei a me sentir desconfortável dentro dela. Faltava espaço e alguma coisa em mim informava que eu devia sair.

Sair, partir, cumprir o destino, seguir o ritmo da natureza; acolher o inevitável de forma madura e resignada. Assim o cosmo se harmoniza e ninguém se machuca.

Ótimo, quisera ser um abençoado de Deus então, para compor esse magnífico quadro com o qual algum pintor iluminado brindará aos seres escolhidos para a última comemoração à vida.

Não, partir não é isso. Partir é dor, é transição, Partir é atirar-se ao desconhecido, é arriscar a perder o que se tem em troca do que se deseja.

E, naquele momento, tudo o que eu desejava era ficar ali, que nada poderia ser melhor no mundo do que aquele lugar. De qualquer forma, tudo estava fora do meu controle. O preço a pagar pelo paraíso passa pela impotência de controlar o que vai acontecer agora ou mesmo ali adiante. Sou feliz, não penso. Não penso, não decido, Enquanto não tinha noção do que havia além daquele espaço confortável, nada disso tinha importância: pensar, decidir não tinham ainda sido incorporados na minha restrita gama de conhecimento.

A dor no estômago aumentou e uma nova sensação desconhecida apareceu: faltava ar, sufocava.

Então o movimento em direção ao desaperto e, bruscamente, a parada. Ela não queria me liberar. Prendia-me dentro dela e me sufocava. Quando a dor no estômago tornou-se insuportável, fui à luta: tentei orientá-la, mostrar-me, dizer quem eu era e todas as vantagens que ela teria se eu sobrevivesse. Nesse momento ocorreu o primeiro movimento em direção ao pensar instintivo. Algo está mal: penso, tenho medo, decido, vou lutar para sobreviver. Tudo em vão. Ela estava decidida a acabar com todo o sofrimento ali, naquele momento. No sangue dela, que passava pelo meu corpo, só consegui detectar medo e raiva. Ela não me escutava e eu estava em pânico. Pus em prática o pensar instintivo e tomei a primeira atitude de preservação da vida que acabaria repetindo ao longo de todo o resto dos meus dias: relaxei e iniciei com Ela um diálogo sereno e tranqüilizador. Passei a negociar e troquei a vida do meu corpo pela morte da minha alma: disse a Ela que eu era um homem (ao contrário das três filhas anteriores) e que eu cumpriria, resignadamente, o destino não cumprido pelos três homens que falharam na tarefa de tomar conta dela: o primeiro, o pai, porque foi um alcoólatra fracassado; o segundo, o marido, porque foi um sóbrio fracassado e o terceiro, o filho morto ao nascer, porque foi um fracassado sem nem saber o que era bebida.

Assim foi que venci minha primeira luta de sobrevivência. Ela acreditou em mim e me deixou nascer.

O que se passou a seguir todo mundo conhece: primeiro a sensação de frio, o suspense, o primeiro jorro de ar frio expandindo os pulmões e o grito de vitória que os não iniciados pensam que é choro. A sensação gostosa de alguém esfregando meu corpo, a luz incômoda ardendo nos olhos, pernas e braços se espichando. O novo, o inesperado, a dor da perda, que sempre acompanha o novo e o alívio de não ter o sangue angustiado dela percorrendo meu corpo. A partir de então, os medos delas deixariam de fluir diretamente pelos nossos sangues compartilhados e passariam a necessitar uma conexão externa, sem fio.

Fomos apresentados informalmente e, nesse encontro, descobri que, daquele dia em diante, além de respirar, teria que ter alguma participação no ato de me alimentar. Trocava, gradualmente, o paraíso pelo poder de decidir. Não posso dizer que a comida era boa ou ruim. Não tinha experiência para tanto. O certo é que me satisfazia e o prazer de me sentir aconchegado, ouvindo de novo o coração dela bater junto ao meu peito era tudo o que bastava para imaginar que o paraíso talvez tivesse uma dimensão maior do que eu estivera imaginando.

Por outro lado, eram tempos confusos aqueles: o prazer substituía a dor, depois era um desconforto não identificado, ausências prolongadas e de novo o prazer.

Aos poucos fui aprendendo a identificar o cheiro das coisas. Quem me alimentava tinha um cheiro especial, conhecido e que, no início, me lembrava sempre o paraíso, o prazer e, algumas vezes, a dor, a tristeza e o medo.

Mas havia outros cheiros: um deles era também especial pois me enchia de prazer, de paz e aconchego, além de uma sensação que, somente anos mais tarde, vim a descobrir que os adultos chamam de amor.

Assim é que meus dias eram preenchidos por inúmeros cheiros, mas dois eram especiais: o que emanava do corpo que me aliviava a fome e o outro, que me envolvia serenamente e me transportava para um estado elevado de consciência, de paz, de relaxamento e de integração com o meio, onde o corpo deixava de ter limites e passava a ser apenas uma sensação prazerosa flutuando num espaço inconsistente e atemporal.

Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 27/08/2011
Reeditado em 27/08/2011
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