A INVASÃO BÁRBARA EM PARIS
 

Os gauleses jamais poderiam imaginar que algo semelhante aconteceria de novo à nossa querida Paris. Nunca tivemos a importância política e econômica de Lugdunum, mas o que interessa é que qualquer cidade onde tenhamos o umbigo enterrado, por mais insignificante que seja, será eternamente o nosso lar, o nosso burgo. Eu ainda era muito jovem, não um velho sem dentes, careca e indigente como hoje sou, catando restos de comida das feiras populares, fazendo escambo de qualquer coisa, acometido pela desgraça, doente e sem herdeiros.
 
Era uma manhã do outono do ano de 845. Tênue neblina recobria os telhados da cidade e pairava sobre o rio Sena. De repente, do meio da névoa, eles surgiram com seus pequenos e velozes barcos, emoldurados com cabeças de seres mitológicos na proa. Eram dezenas de embarcações. Na primeira delas, empunhando seu escudo redondo e  a longa espada, estava Sverker, o Cruel, comandante da esquadra. Com seus capacetes pontiagudos e uma vontade enlouquecedora de guerrear, invadiram a cidade, em nome de Odin. O império Carolíngio não sabia o que fazer. Na Borgonha, na Aquitânia, na Provença Bretanha, em Verdun, em Lotaríngia, nem no Loire jamais se ouvira falar de algo semelhante. Sentimos saudades do velho Império Romano, de instituições políticas sólidas. Com eles, esses bárbaros não teriam coragem de serem tão ousados!
 
Durante uma semana saquearam nossas casas, roubaram qualquer coisa que tivesse algum valor, violentaram nossas mulheres e filhas, mataram nossos bravos jovens. Sucumbido em sua própria covardia, o rei Carlos, o Calvo, decidiu negociar a rendição. Ofereceu uma grande quantidade de moedas de  ouro, joias em esmalte cloisonné, peças de cristal lapidado e armas com punhos incrustrados de pedras preciosas,  para que os vikings fossem embora. Então, eles partiram carregados de despojos, levando ainda dezenas de prisioneiros. Ao longo de seu caminho de volta, saquearam, pilharam e incendiaram várias cidades costeiras. Para eles, o momento da morte em batalha é sublime. São de uma grosseria brutal, embriagam-se por mero prazer, empanturram-se até vomitar.
 
Quinze anos se passaram. Então, eu trabalhava como ajudante nas vinhas do velho Jean. Carregávamos cestos e mais cestos de uvas, dos vinhedos para o esmagamento, todos os dias, do nascer do sol ao anoitecer. Lado a lado comigo, sempre estava Pierre, meu bom amigo. Eu tinha então, 24 anos e ele, 21. Pierre era uma bela figura, um jovem de cabelos louros e olhos azuis. Não foi difícil que a linda Marie, filha de Jean, se apaixonasse por ele. Encontravam-se furtivamente, às escondidas, sempre no início da noite, entre os arvoredos, fugindo dos olhos do irascível pai. Com certeza não era aquele o futuro que o velho vinicultor desejava para sua filha. A ela estaria reservado melhor destino: desposar um rico comerciante ou, quem sabe, um dos pequenos nobres da corte.
 
Contudo, em uma cidade tão pequena um segredo destes não poderia estar guardado para sempre. As paredes têm ouvidos e a feira é um local onde tudo se diz e tudo se sabe. Logo todos comentavam os furtivos encontros dos dois jovens amantes e tal informação não tardou em chegar aos ouvidos de Jean.
 
Então, naquela manhã de verão do ano de 860, quatro homens arrastaram o jovem Pierre até as margens do Sena e espancaram-no impiedosamente. A população, assustada, não esboçou a menor intenção de reagir à infame agressão. Sempre se acreditou que a honra só pode ser lavada com sangue. Eu estava a cerca de dois quilômetros dali, e mesmo sabendo que pouco poderia fazer por meu amigo, lancei-me em desenfreada corrida, com o intuito de tentar, de alguma forma, ajudá-lo.
 
Foi quando, do alto de uma pequena colina, eu os vi. Os vikings estavam de volta. Quinze anos depois, Erik, filho de Sverker, que em tudo queria superar o pai, comandou um novo ataque. Após o combate anterior, havíamos construído sebes e praças de guerra, fortificações feitas de árvores e espinheiros entrelaçados. Muitas casas eram cercadas com paliçadas. O providencial alvoroço que tomou conta da cidade foi o que impediu Pierre de ser surrado até a morte. Abandonaram-no ali mesmo, entre a vida e a morte, esperando que os vikings terminassem o serviço que começaram.
 
Durante várias semanas resistimos a três ataques, até que os vikings pareceram se dar por satisfeitos com a destruição que provocaram e partiram. Pierre nunca mais foi visto. Todos acreditaram que seu corpo estava entre os de centenas de jovens mortos, lançados ao rio. A pequena Marie, contra a sua vontade, seis meses depois foi obrigada a se casar com um ilustre senescal, vinte anos mais velho que ela. Foi à época em que as pontes sobre o Sena começaram a ser construídas, como uma forma de retardar as invasões bárbaras. Criaram até uma cavalaria, sempre preparada para nos defender.
 
Passaram-se quarenta anos desde a primeira invasão. Agora, em 885, eles estão de volta. Dizem que chegam com 700 barcos e quase 30.000 homens. Esta película branca sobre os meus olhos me impede de ver tão bem quanto antes, já não consigo enxergar nada com precisão. Mas as notícias correm rápidas nesta sociedade tão moderna. Comenta-se que dessa vez eles estão ainda mais furiosos e que ao lado do comandante Olaf, o Ruivo, está um inteligente jovem de olhos azuis e cabelos louros, que chamam de Piotr, o Renegado. Dizem que tudo o que ele quer é aplacar a sua sede de vingança e sequestrar uma jovem senhora viúva chamada Marie. Que Deus atenue a sua ira!



Conto premiado no 12 Concurso Nacional Josué de Castro, na 14a. Jornada Nacional de Literatura, Passo Fundo, Rio Grande do Sul, 22-08-2011.
Goulart Gomes
Enviado por Goulart Gomes em 23/08/2011
Reeditado em 24/08/2011
Código do texto: T3178395
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