O ÓDIO QUE NOS HABITA
"O ódio é um veneno que tomamos,
quando queremos matar o outro."
Quem nunca odiou ? Digo, ódio de morte, que revela o lado mais sombrio da alma?
Poucos.
A gente costuma odiar superficialmente, coisas que nos aborrece.
E quase não se fala do ódio, um sentimento tão comum quanto o amor, que é celebrado a todo instante, a cada texto, neste recanto.
Vou narrar um caso antigo.
Ocorrido num pequeno lugar do qual hoje quase nada resta.
Do tempo em que a estrada do Aguapei, tinha importância e até traçado diferente.
É onde viviam imigrantes, japoneses, italianos, espanhóis, e, que eu me lembre, até um francês, baixinho, de bigodes e solteirão.
Um padre que vinha a cada quinzena rezar missa; de vez em quando um turco com maleta de badulaques e tecidos de uma só estampa.
A escola ficava longe, a seis ou oito quilometros. Onde as crianças iam toda manhã, molhando os pés descalços na grama orvalhada e levando no embornal rústico caderno, lápis e uma batata doce cozida como merenda.
Quem há de se lembrar deste tempo?
E quem há de se lembrar do fato?
Meu pai de vez em quando verbalizava em economicas palavras. Algo como um anfibio que habita o fundo de um lago, que vem à tona tomar folego, e rápido retorna para o lodo sombrio.
Talvez outros lembrassem também.
Pessoas antigas, como aquele japonês que, na minha infância, ia matar frango no quintal, pistola na mão e molecada atrás, para ver a ave cair fuzilada. E, enquanto a ave era apanhada pela mulher para ser depenada, ele voltava macambuzio para um banco de madeira rústica a olhar o infinito.
Pensando o quê?
Sei lá !
Quem há de saber o que se passa na alma de um homem.
O acontecido começou assim, sem ação, numa doce manhã bonita de céu azul.
A garota saiu com outra para ir à escola.
No meio do algodoal alto e branco de maças abertas, foram atacadas, espancadas, violadas. Uma morreu.
O autor foi logo identificado. "Negro Aço". Era saruê. Nem era negro. Nem tinha nome. Nem destino.
Era só. Alcoólatra.
Foi encontrado rapidamente.
E as pessoas, dezenas delas, que se agrupavam em frente a casa das meninas, souberam logo que ele estava dominado na "Figueira Alta".
Sabe você quando pega fogo no pasto, nesta época seca de agosto?
Quem há de segurar?
Depressa o fogo alastra e só sossega quando acaba a palha.
Assim foi.
Como incêndio que rápido se aplaca, depois que calcina.
Talvez tenha sido a dor.
Talvez tenha sido a capacidade humana de se colocar no lugar do semelhante.
Talvez a fome e sede de justiça.
Talvez.
Talvez porque "a essência do todo crime permanece irrevelada", como li em Poe.
O mal pelo mal.
As pessoas foram até "Figueira Alta".
Alguém trouxe uma corda.
Uma longa corda.
Lançada num galho.
Presa a um pescoço.
Esticada longamente.
Na qual todos colocaram a mão.
Em comunhão.
E gritos de ódio.
E quando foi esticada.
E o corpo saiu do chão.
O pai da menina morta grita:
"Parem ! Parem !"
E o corpo retorna ao chão.
Enrodilha-se.
Chora.
Convulso.
E o pai retoma a palavra, em voz desconhecida:
"Vejam como mija e sofre.
Para que ele morra mais uma vez.
Para que ele morra várias vezes,
vamos tornar a puxar a corda."
Está sepultado em lugar incerto.
Não se fala mais dele.
Nem das meninas.
Apenas o anfíbio do lodo do lago às vezes vem cobrar:
ele era demente !
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Sajob - agosto / 2011