DOLORES (2)
Dolores (Parte 2)
Olhou mais uma vez para o criado-mudo, depois para o relógio da cabeceira. Passava da meia-noite. Nada de sono, o que era intrigante.
As lembranças de sua vida com Eugênio passavam velozmente pela cabeça: o primeiro encontro na saída da escola, o namoro, o noivado, o casamento, a viagem para a Europa, o primeiro filho, o segundo filho, o terceiro filho, a casa nova... Tivera uma vida com sobressaltos apenas imaginários. Ao correr do tempo, o ardor da relação havia arrefecido, mas, como lhe ensinara a mãe, o tempo substitui a paixão pelo amor verdadeiro e este implica em renúncia. A segurança da relação se torna mais importante que a busca da aventura sonhada na adolescência. Eugênio tornara-se menos atencioso e ela menos disponível. A companhia um do outro lhes bastava. Ela cumpria com as obrigações de dona de casa e ele de marido atento às necessidades da família. Quando Eugênio foi obrigado a fazer viagens freqüentes em razão do trabalho, toda a rotina já estava consolidada e a relação não sofria riscos. Eugênio cuidava da estabilidade econômica. Dolores cuidava do futuro dos filhos. De tempos em tempos sobressaltava-se com notícias de separações de antigas amigas e revisava o casamento. Não, nada a temer. A relação deles era sólida, respeitosa e calma. As desavenças eventuais eram resolvidas com sobriedade, paciência e a exata dose de renúncia ensinada desde cedo pela mãe.
Duas e meia da manhã. Talvez um chá de cidreira trouxesse o sono necessário. Foi até a cozinha, colocou a chaleira no fogo e tentou imaginar como seriam as novas manhãs daquela casa, enquanto esperava ferver a água. O nó na garganta e a perspectiva de uma lágrima fizeram-na mudar a atenção para os móveis da cozinha. Pensou em trocá-los. Um projeto antigo rejeitado inúmeras vezes por Eugênio e não realizado para não contrariá-lo. A renúncia. Já não havia mais razão para esta renúncia. Lentamente foi se dando conta que uma quantidade enorme de renúncias tinham se tornado órfãs de Eugênio. Um misto de alívio e apreensão foi se apoderando do coração pouco afeito a estas emoções. Precisava respirar, fazer coisas, que era a forma que conhecia de controlar as emoções.
Com a xícara de chá na mão subiu as escadas.
Arrumar o quarto de cima era uma maneira de afastar pensamentos inquietantes. Em outras épocas, quando esses pensamentos davam o ar da graça, ocupava-se cuidando dos filhos, atendendo a Eugênio, dando ordens a Rosaura, enfim, cuidando do que era necessário cuidar. Suas técnicas eram infalíveis e a vida permanecia organizada como devia.
Sentou na cama, tomou um gole de chá, ajeitou uma mecha de cabelo, que era um gesto simbólico de mandar embora “pensamentos ruins” e decidiu começar pelo roupeiro.
De forma brusca foi atirando ao chão todas as roupas de Eugênio, começando pelos ternos, depois as camisas, todas impecavelmente passadas, cuecas, meias, organizadas por cor, em degradê, roupas de inverno, pijamas, lenços. Tudo. Ou melhor, quase tudo: restava a prateleira mais alta, onde estava o revólver.
Hesitou. Local proibido. Risco de morte.
Morte? Pensou. Não havia mais proibições. Tinha que escolher: era a renúncia ou a liberdade; o alívio ou a apreensão; o resgate ou o abandono.
Decidida, buscou uma cadeira e invadiu o espaço eternamente proibido. Não havia qualquer revólver. O que havia era uma caixa de madeira nobre escura, provavelmente imbuia, delicadamente marchetada com lâminas de cerejeira circundadas com filetes dourados.
A transgressão tinha-lhe exigido uma grande energia. A surpresa esvaziou essa energia como se desatasse o nó do balão e ele disparasse num assobio pelo ar.
(continua)