Monstros

A humanidade precisa criar seus monstros para sobreviver.

Apedrejados, queimados, guilhotinados, sentenciados... Todos pagam com a própria vida pela condição de serem diferentes. Quem os apedreja, queima, guilhotina, sentencia? Humanos, seres demasiado humanos!

A donzela, acorrentada a uma rocha, espera o momento de ser jogada ao mar; o homem, açoitado exaustivamente por um algoz, está remando, braçadas firmes, conduzindo a embarcação para um incerto caminho, talvez sem volta pra ele; no firmamento, surge, soberba, a mais recente lua cheia. Ao lado, uma mulher de magia cinza, mobilizada e sob a ação de uma cruz, espera a ordem do Homem de Deus para que a lancem, em holocausto, na fogueira – as labaredas do fogo ardente ansiavam por sangue – e os homens também; um facínora, pobre, ressalte-se, é um inglório homem de vanguarda: será o primeiro, meados do Século XVIII, a morrer na guilhotina, um método mais humano de sentença de morte que o enforcamento e a decapitação com um machado – pura evolução!

As pedras asfaltam as ruas; as pedras ornamentam as casas, os templos, os palácios, as prisões; as pedras simbolizaram a fortaleza de propósito e ensejaram a metafórica construção da fé; as pedras, entretanto, apedrejaram e apedrejam inocentes, culpados pela decisão de homens humanos, demasiado humanos! A vida, sem a emoção teatral, não merece ser vivida; a morte encenada, esta sim, encanta a todos, pois adoramos o massacre circense e a destruição avassaladora quando aplicados aos outros.

O verbo une. O verbo cria desavenças. O verbo nos propicia atos de amor, de ódio; o rancor externado pela fala nos torna secos, ávidos pela mácula do não perdoar. E o verbo se faz presente. Solta. Prende. Expurga, purifica. Acorrenta... Serve de persuasão diante de um homem que julga, homem demasiado humano.

O tempo voa nos braços das mais recatadas bruxas! O tempo sopra em suaves brisas ao conduzir as fadas. Os sopros são os mesmos. As movimentações de vassouras, ou de varinhas buscam a sobrevivência, mas as mulheres dotadas de bondade, graça e leveza não assustam. As feiticeiras, sim, merecem as vassouradas da vida e dos homens, demasiado humanos.

O tempo voou... Século XXI.

Os pobres monstros pobres precisam perecer. Porrada! Porrete! Possuídos tribunais! Potente proselitismo, pressionando os pequeninos, ignorando seus ais... Gritos, gemidos, que importa! Os monstros atrapalham, mas movimentam a gangorra da vida – ai dos justos sem os injustiçados! Como mostrar autoridade sem ter em quem bater? Os homens, demasiado humanos, todavia, sentenciam fantasiados de preto, mesmo quando o picadeiro exigiria um nariz rubro de palhaço diante de tamanha aberração. Pena que a graça dos saltimbancos se perde quando crescemos e os arlequins não causam comoção aos rabugentos e crescidos homens.

Severos nos julgamentos, rígidos nas colocações, possuem voz forte, firme... Na ante-sala, aos olhos apenas do Altíssimo, zombam dos pequenos que não podem participar das transações que se processam atrás das cortinas. Seria mesmo a vida um jogo de cartas? Seria mesmo necessário submeter o já sôfrego homem a uma sentença corrompida, jogando-o às traças?

Houve fogo. As bruxas foram queimadas e as cinzas, os sinais de fumaça, infelizmente, não serviram para sinalizar a morte e o homem descendente continuou a exterminar cada novo monstro.

Ah tempo cruel... Ah humanidade simplista que reconhece seus habitantes pelos erros, falhas, limitações.

Pontualmente, o senhor Incógnito X, digno, probo, mas humano, errou e toda uma vida de acertos foi deixada de lado. Agora ele é a escória humana e se tornou um fora-da-lei. Os jornais citam-no como desregrado, coitado, virou monstro! Quem o julga? Seres demasiado humanos que, às escondidas, possuem as mesmas limitações...

‘Quem não tem pecado que atire a primeira pedra’.

Infelizmente, as pedras existem em sobejo, mas a consciência individual nos impossibilita de atuarmos contra nossas próprias veleidades e o que nos apraz, deveras, é a sensação de plenitude diante da desgraça alheia. É o despojamento da consciência que nos faz agredir o criminoso, sendo criminoso; julgar o culpado, mesmo enxertado de impurezas; criar monstros nos outros, pelos outros e para os outros, escondendo, dentro de nós mesmos, a maldade nua e crua, a essência que nos faz desumanos demais.

Cena final, o desaforamento das máscaras.

A donzela não existe mais – foi julgada!

O homem das galés remou até a morte, exaurido pelas agruras decorrentes dos maus tratos.

As bruxas, ainda hoje mistificadas e lendárias, continuam a turbar as mentes dos fracos que se apegam a sincretismos, usando tais amálgamas de concepções heterogêneas para sobreviver.

Os desafortunados continuam herdando em sua gênese o atavismo da monstruosidade porque, a desventura, misto de desdém e aventura, não lho tem por amigo...

E os faustos, venturosos e ditosos homens, demasiado humanos, em algum dia no tempo, tenho certeza, serão varridos da face da terra para que outros homens, demasiado desumanos, recriem monstros que impulsionarão a continuidade da vida.

Crato-CE, 20 de agosto de 2011.

00h03min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 20/08/2011
Reeditado em 20/08/2011
Código do texto: T3171334
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