as pontas da vida
Amava o quintal da sua casa. Saia pela porta, olhava de manhã que o dia não chegava de uma vez só e ele também não percebia como e que horas decidia partir . E essa indecisão era vivida em seus olhos, que acompanhava cada cor, gesto das flores e o vento, que dava à mangueira, dignidade e força. A casa grande que, à tarde escondia, parte do quintal da claridade, criava uma penumbra amorosa. Era como descanso da tarde, uma parte que se desgrudou o resto, num cansaço de tanto existir.
Os muros altos, escorridos pelo tempo , restos negros de chuva, entre os tijolos, pedaços tímidos, lagartixas corriam, em movimentos extremos e paradas bruscas, que freava seu olhar incansável. Uma curiosidade pelo mistério, que ampara a existência: Um microcosmo de experiências e mortes, tragédias e partidas. O tronco envergado doía pelo descaso. Suas cascas caiam e sua carne branca e riscada, aparecia sem mascaras, tessituras. Somente o bruto fino. O profundo exibido, desnudo da arrogância dos imortais, ou do medo de se ver natureza, que em essência, está sempre a partindo.
As formigas, disciplinadas em suas filas carregavam um resto de mundo, um cadáver, o que se soltou do resto, para um buraco mais profundo do que esse. Como se por mais que olhasse, o infinito se tornasse cada vez mais infinito, numa vastidão que partia da dor mais infame para glória mais desesperada. E seu coração que de tão leve, não permitia nenhum pensamento entrar, macular, sujar o que lhe chegava pelas portas do corpo. Tudo entrava, chegava e ganhava cheiro, tudo era um nota importante pra soar acordes coloridos.
Seu corpo todo estava no mundo, nada lhe foi tirado. Não lhe falaram mal das plantas, da vida, do pai, da mãe, nada, deu lhe a vida viva, corrente, um cantiga eterna que não termina, que cria tensão e cai. Não no fundo sem passos ou esperanças, mas outro patamar, que sempre tem ar e comida, uma força pra andar de novo. A queda não lhe é a morte, mas um aumento da sensibilidade, pra ver melhor as borboletas, os espinhos, e as flores que de tão bonitas, deixam descompassos no interior. Percebe que pra ver as flores, antes é necessário viajar com as formigas, saber de sua fome, de seu medo, e do peso que tem o céu em suas cabeças.
Ao meio dia, tudo acaba numa explosão de sol, nada está escondido. O menino dói, porque tudo aparece, nada é mistério, as plantas sofrem por dentro e ele contempla sua dor, aguenta firme o excesso de amor. Deus absoluto, aceitando tudo. Seu quintal, messe instante, é um céu sem as duvidas da morte. Cada cantinho tem seu segundo de existência. As veias e os sulcos da terra, o pequeno e o insignificante, ao meio dia, tudo é eterno, varrendo o mundo, em seu olhar de reconhecimento, numa profunda compreensão. E por ser verdadeiro, precisa ser rápido, quase ríspido e agressivo.
Agora, nada é mais importa. A mangueira grande e solene dança com o coentro, as cascas, o poça da chuva, como se uma mão invisível e evanescente, um braço de aço brilhante, abraçasse tudo. E ele olha e também se sente abraçado. No entanto, ele sabe que é passagem, sabe que o máximo de luz do meio dia, tem tempo e duração, tem a compaixão de não se fazer eterna. E o planeta parar, morrer, sem o acolhimento da noite, das águas, do frio e das pequenas mortes que a gente não sente, por ter medo de morrer junto. Do rio que corre nos cantinhos. Que só vive por ser escondido, mas nem por isso, menos importante...
O menino respira com o coração, cada poro de sua pele tem também planta e solidão, seu rosto brilha como se a felicidade, mesmo fulgaz, existisse, e está nas coisas pequenas, que não aparece, justamente por serem pequenas. Sente bem e pronto pra entrar dentro de casa, dar um beijo em sua mãe, talvez almoçar a comida que já existe no cheiro que vem da cozinha. Porque depois, pela parte da tarde, precisa sair de novo, não pelas porta dos fundos, a do quintal, mas pela porta da rua , que é a outra ponta de sua vida.