O OUTRO LADO DO VERBO
Um redemoinho de pessoas se apressava em terminar o interminável. Seus sobrados agonizantes, pensos, atrapalhados davam impressão que iriam desabar. As estacas estavam de prontidão, sustentando os frangalhos de residências, os fiapos de resistência. Era mais um bairro de madeira. Um buraco no meio da cidade beirando o rio, sangrando a seiva que se esvaía para o rio.
Como formigas de roça, homens e mulheres trabalhavam incansáveis, inquebrantáveis, martelando pregos, reciclando tábuas, pregoando tábuas, sustentando os frágeis telhados de madeira e papelão. Todo material das paredes recebia uma camada espessa de lama do mangue. Vez por outra um e outro olhava para o céu, um misto de cinzento e veias vermelhas de sol em fúria. O astro mãe estava inquieto, soltando promessas de ira contra filhos e filhas no rombo da cidade. Os bacuris, meninos barrigudos, minuciosos como sempre recolhiam materiais que não eram vistos a olhos vestidos dos adultos. Brochas eram recolhidas, preguinhos, pedacinhos de arame, parafuso; material. Chegavam com as mãos cheias disso e daquilo, mostrando apressadamente para os pais e correndo novamente para o entorno da grande boca aberta no centro da cidade. Eram gotículas tentando terminar um incêndio que ainda não havia precipitado.
Os calores dentro e fora da favela não eram normais para aquela época. Por que céu anda castigando as gentes da cratera? São tão irremediáveis com seus remédios de construção. Olha lá ao longe quanta gente bonita, de barrigas cheias de comida, felizes, em seus passos lentos. Olha pra cá e vê a ligeireza dessa gente, faminta, que mora mal, dorme mal, mal existem. Sol anda sofrendo de miopia. O seu calor é perigoso para tábuas e papelões. Maltrata crianças em estágio avançado de desidratação, deixa os vermes em polvorosa dentro das barrigas dos rebentos; arrebentam.
Final do dia é exaustão só. Parece que pais e filhos fazem de propósito, assim não têm apetite. Não tem muito que comer mesmo. Assim as sobras sobram para o outro dia, dia de nova correria, e ajeita aqui, prega ali, constrói e reconstrói; destrói e faz de novo. O que os alimenta é o instinto de proteção que os seres da cratera urbana têm uns com os outros. Reconstroem-se todos os dias a difícil vida deles. Os homens e mulheres formigas não estão numa fábula. É muito real o que vai acontecer. Os sete sentidos desenvolvidos dos felinos com suas sete mortes e suas sete vidas expuseram o problema, a favela vai ruir. A luta e o extinto da sobrevivência disseram – estou aqui! Mas, acabar? Ruir por quê?
Os rumores na greta começaram após o achado que fizera o pequeno bacuri amarelo. Este ser inquieto era o mais ágil e mais esperto dos nascidos naquele lugar. Dizem que sua mãe fora feiticeira em outras encarnações. Quando partiu, deixou ensinamentos bastante aprofundados sobre as reações da natureza, coisas que se enraizaram nele. O menino compreendia o comportamento das formigas, os choros dos gatos, os latidos apavorantes dos cachorros. Ao amanhecer, após longa chuva que castigou a fenda por toda a noite, o menino amarelo, nu como um dia veio ao mundo, foi o primeiro a por os pés no charco. Caminhou alguns centímetros em direção à maré e achou aquela folha estranha. Era feita de um papel que não se molhava. Ao toque da água os escritos ficavam cada vez mais nítidos. No centro da folha estranha havia um círculo amarelo gema que ganhava contornos avermelhados ao expô-los ao sol. Ao segurá-lo com as duas mãos e mostrá-lo ao sol, o bacuri via aquele círculo rodar, os caracteres mudarem, permutarem em parágrafos, dançarem em linha, tomarem formas de desenhos decifráveis. Umas imensas crateras rodeadas de prédios, rios e vegetação de mangue se misturavam em turbilhão de tábuas e papelões. Era o mistério, que cuidadosamente o menino xamã começava a desvendar.
Pelo seu semblante e por uma lágrima que deslizava pelo anêmico rosto, ele traduzia o escatológico, prenunciava um mal dizer. Aos poucos os casebres da boca do mundo iam acordando, vomitando gentes em todas as direções que corriam para derredor do ser que dourava na intensidade do astro mãe. Num estranho sinal, que aquela multidão de seres soube traduzir, o menino prenunciou o fim. Dizia ele que o astro mãe, contava seus dias e levaria seus filhos também. A humanidade estava fadada ao seu sono letal. Ao menino, só restava adormecer as dores dos seus. Em cima de um caixote de madeira ele passou as tristes orientações. Pediu para que se erguessem e reforçassem as tábuas dos barracos, mas antes untassem essas tábuas e papelões na lama do mangue. Ele sabia que no aquecimento contínuo das tábuas e papelões pelos raios do sol, aquela lama untada de mangue produziria um olor cálido e adormecedor, reduzindo a nada o sofrimento do seu povo.
Não se ouvia mais barulhos na boca gigante, cratera de tábuas, buraco de urbe. Nada se mexia. Os barracos cobertos de seiva lama de mangue não estalavam, não gemiam quando o astro mãe veio abraçar seus filhos. Apenas o entorno era ligeiro, vivo de pernas correndo, de gente gemendo, pulando nas fontes que começavam a ferver. Os barrigas cheias nunca se preocuparam com o amanhã e não viram a mãe sol emitir seus avisos que a hora era a hora. O que era buraco virou uma flor de fumaça cheirosa, que em instantes não estava mais lá. Adormecidos os seres evaporaram com as águas do mangue também. O grande buraco desapareceu sem dor, adormecido com sua gente. A metrópole ardia e fritava, enquanto o sol sofria o sofrimento deles. A dor cobriu as casas, os apartamentos, as ruas, os bairros, as cidades, a união das cidades com as outras, e dessas com todas as demais, queimando egoísmos, insensibilidades, sumindo ao sol.
O fim da favela foi o início de um outro verbo, que a toda poderosa natureza começou a refazer, ensinando o novo homem os acertos e alertando para os seus erros, lembrado pra ele não reiniciar o ciclo da purificação. Alguém sobrou para que se iniciasse a nova conjugação.