Canção de vida e morte
Madrugada. Em uma praça mal-iluminada, uma garota está sentada em um banco. Seu vestido vermelho, seus cabelos negros e seu rosto estão ensopados por duas chuvas: a primeira vem do céu, a segunda dos seus olhos, ou do coração, para ser mais preciso e subjetivo. Várias vozes passeiam pela sua mente. Não, escutando melhor... é algo completamente oposto. Junto à música da madrugada seria equivocado dizer que passeiam. Mais adequado é dizer que vagam, discutem, guerreiam. Essa, porém, não é a voz principal da noite, e sim um sussurro rouco próximo a seu ouvido.
- Bonsoir, Mademoiselle... por que estás com essa expressão deprimida e preocupada? Desde que viestes até aqui, minha cara Lady, já suspirastes 14 vezes, pensastes em 49 formas de se matar e em 7 pessoas que incrivelmente, odeias tanto quanto a si mesma. Pode parecer estranho, mas vim até aqui apenas por sua causa. Posso te aconselhar?
- Quem...ou o que é você? Pergunta ela, olhando em volta lentamente, congelada pelas friezas do vento e da voz que apareceu repentinamente. – Onde você está? Por que não consigo vê-lo?
- Sou...”eus”. Eu sou “eu, um anjo de luz” e “eu, um anjo de sombras”. Um guardião das portas vida e da morte. Um servo, um mestre...tudo e nada. Não importa muito o que sou...e sim o que você será, madame. Não estou “aqui”...apenas a minha voz existe aqui, por sua causa. Por isso você só consegue escutar, e não me vê. Direi uma coisa: você pode me ver...ou fazer qualquer coisa...basta desejar, e o eu que é servo lhe concederá.
- Você não me ajudou muito até agora, se era o que pretendia...mas disse que me aconselharia...aconselha-me a desejar ver quem é você?
- Aconselho-te a desejar o que realmente queres enquanto podes, senhorita – respondeu a voz.
- Entendo...então eu desej-
- Porém...-interrompeu a voz- aconselho que pondere seus desejos... Ao final, tudo é ou será equilíbrio. Para a luz, trevas. Para o dia, noite. Para a alma, a alma-gêmea. Yin, Yang...para o desejo, decisão ou atitude, as consequências.
A voz aparentou ter deixado a garota só neste momento, para que ela refletisse. A garota solitária refletiu durante o tempo que uma pequena pedra demora para cair em um poço que parece não ter fundo. Baixo, mais audível, o eco da pedra na água acorda a garota. Esse e o eco daquela voz assombrosa e conhecida.
- Salut, Mademoiselle...quanto tempo se passou desde o nosso último encontro? 3337 minutos, horas, segundos ou pensamentos? Vejo que aprendestes a refletir...a chuva mostra agora um arco íris...um vislumbre de iluminação. Posso conceder o seu desejo?
- Eu...desejo poder ver você.
A visão da garota escureceu. Aos poucos, voltou a ver. Estava diante de um espelho, com uma bata branca. Espantou-se. Via-se no espelho como uma garota albina. Não acreditou que aqueles cabelos brancos e olhos avermelhados fossem seus. Pouco depois percebeu que tinha um livro em seus braços. Examinou a capa. Era negra, e em magistrais letras douradas continha os dizeres “As portas da vida e da morte”. Perguntou-se onde estava, o que era aquilo tudo, mas não por muito tempo. A voz voltou.
- Agora...você poderá me ver.
E a voz começou a entoar um cântico sem palavras, triste, melancólico, que lhe fazia vislumbrar a morte, e coisas relacionadas. Em meio a seus devaneios, teve um arrepio completo imaginando sua pura bata manchada com o vermelho de seus olhos. Neste momento outros olhos apareceram. Eram cinzentos...um cinza levemente azulado. Pertenciam a um homem alto, que apareceu logo depois, passando a mão pelo seu pescoço. Posicionando atrás dela, também foi devidamente examinado: alto, cabelos negros com leves mechas brancas, pele muito pálida, mãos delicadas, unhas grandes e negras. Vestia um sobretudo aberto, sem camisa e uma calça, ambos negros. Não estava calçado. A voz voltou, mas parecia sair da boca da figura.
- Seu desejo foi concedido, mademoiselle, disse ele.
- E...onde estamos? Por que estou...assim?!
- Estamos na porta da vida e da morte. Você está...morta. Isso explica sua nova aparência...ou a “falta” de uma, para ser mais preciso.
- Mas como ass-
- Morrer –disse novamente interrompendo a garota – é a consequência de me ver...eu sou a “morte”. Seu desejo foi realizado. Agora, como pagamento, você me ajudará a guardar estas portas, eternamente...- e conseguiu tornar sua voz ainda ainda mais sombria.
- E eu não posso...fazer outro desejo?
- Sempre podemos desejar...mas, antes que desejes, posso te aconselhar?
- Se acha que deve, me aconselhe.
- Seu desejo atual foi um desejo bom e prudente? Os antigos o foram? Os novos o serão? Então, reflita...
E a voz e seu dono deixaram a garota novamente sozinha.
A garota refletiu. A imagem refletida da garota era tão eterna quanto sua reflexão. Esta foi quebrada junto com o espelho, por causa d’”As portas da vida e da morte”. As notas roucas retornaram tão rápido quanto o som da chuva, que se misturava ao canto fúnebre, ainda não tão próximo.
- Desejo viver – disse ela, sem esperar nenhuma intervenção, porém com uma voz vacilante.
- É preciso que façamos uma troca...por algo equivalente. Quero todos os pensamentos sombrios que te ocupavam antes do nosso encontro. Talvez sejam o suficiente. É esse o seu desejo? Largue o seu ódio, rancor, pensamentos de morte e vingança. Direcione-os para mim, e talvez você possa...viver.
- São todos seus. Quero...viver- disse a garota, controlando a voz e tentando mantê-la o mais firme possível.
- Vejo que refletiu bem, e seu coração se acalmou. Se precisar, posso te aconselhar sempre, e sempre poderás desejar... Seu desejo será concedido.
Madrugada. Em uma praça, uma garota de vestido vermelho acorda ensopada por uma chuva, pois se em algum momento houve uma segunda, foi apenas uma canção triste que acabou.