Grace On a Bad Day

"Será que um dia

Alguém em algum lugar

Vai conseguir inventar pra mim

Algo que possa

Arrancar de uma vez

Essa sensação ruim de que

O mundo me engole e me cospe

Porque sabe que eu

Não devo fazer bem..."

Dance of Days - Nada Demais

*

Foi numa tarde em que a simples brisa no meu rosto fazia com que eu chafurdasse mais um palmo na lama da tristeza ferrenha e atroz de existir, que ela apareceu: tons rubros, tão faustosa e fulva quanto o primeiro raio de sol da manhã, interrompendo meu percurso prostrando-se na minha frente com um sorriso que, em outras condições, por-me-ia empedernido e empatetado.

Tirei um dos fones de ouvido. O sol, àquela hora vindo da Pompéia, me fazia semicerrar os olhos com certo incômodo. Ela, à minha frente, parecia determinada.

- Você gosta de crianças? – Perguntou, mantendo aquele mesmo sorriso inicial.

- Não – Respondi, sem pestanejar.

Por um segundo houve um ofusco no brilho de seus olhos; mas foi breve, tal abalo.

Eu estava com um prazo curto de tempo para longas imbecilidades laborais, portanto, soltei:

- Preciso ir.

- Mas é rapidinho o que eu tenho pra te falar – Choramingou, com aqueles olhinhos do Gato de Botas de certa famosa animação - É rapidiiiiinho, vai! Juro!

- Posso passar aqui depois, na volta? – Tentei.

- Todo mundo dá essa desculpinha e NUNCA volta.

- Não posso – Volvi, mas meu tom de voz acabou me traindo e fornecendo a brecha que ela precisava.

- Ah, você não tem dois minutinhos!? – Perguntou – Prometo a gente não demora mais do que cento e vinte segundinhos!

- Tá, vai – Cedi, depois de consultar o relógio – Você tem dois minutos!

- Você sabia que com apenas oitenta centavos consegue ajudar no tratamento dentário de uma criança carente?

- É!?

Dinheiro, como sempre. Contudo, achei o valor irrisório. Eu estava mesmo a fim de parar de comer porcarias pela manhã e esses centavos fariam a diferença pra melhor. E lembrei dos meus sofrimentos bucais, mesmo tendo convênio. Seria uma boa. Cedi, pela segunda vez – mesmo com a minha conta bancária sendo mais vermelha do que aquelas madeixas.

Ela retirou alguns papéis não sei de onde, explicou como seriam os procedimentos posteriores e demais burocracias.

Foi quando eu estava lendo dinamicamente algumas cláusulas do contrato que ela me surpreendeu:

- Você anda de skate aqui ainda?

- Aham – Assenti, distraído.

Depois, o “ainda” ricocheteou na minha mente, pois eu pensara que a pergunta tinha sido feita embasada no meu tênis visivelmente gasto pelo atrito com a lixa do skate. Porém, não falei mais nada.

- Eu já te vi algumas vezes, antes...

Foi quando tirei os olhos do contrato e fitei aqueles olhos pela primeira vez.

Algo na maneira que proferiu a última frase – uma seriedade repentina, acho – me chamou a atenção. Parafusei meus olhos no dela. Examinei seu rosto com minúcia. Foi como se eu estivesse cego, porque o que eu passei a enxergar, então, era um dos rostos mais alicientes; de fazer a cara do sujeito se metamorfosear na cabeça de um uivante em júbilo coyote.

- Onde? – Consegui falar, por fim.

- Ah – E deu de ombros – Aqui, de skate, à noite, uma vez, e outras duas no Ibotirama.

Ibotirama é um boteco da Rua Augusta que eu – mau grado – passara a freqüentar.

Encarei-a por alguns segundos.

- Nunca te vi na vida – Soltei, e vi seu sorriso se emurchecendo como uma rosa naqueles documentários sobre a natureza que passam na televisão. Parecia desapontada. E estava. Voltei a atenção pro contrato. Assinei, depois de rasteiramente checar os valores a serem debitados, entre outras coisas...

- Nossa! Valeu, hein, Rafinha?

Senti certo peso sendo retirado dos meus ombros. A aura negativista que me envolvia pareceu me abandonar; quase pude ouvir o adejar de suas asas negras voltando aos confins do inferno. Eu não era tão invisível como pensava que era; alguém tinha me reconhecido, mesmo com as expressões faciais entre uma sessão de skate noturna e um dia útil deprimente sendo tão destoantes uma da outra.

- Obrigada por salientar a minha insignificância, viu, ow? – E riu – Tá viajando?

- Ah, não foi nada disso, meu – Falei, hesitante – É que eu sou bom em guardar fisionomia, e eu com certeza me lembraria de você.

Me arrependi de ter dito “com certeza me lembraria de você”. Tentei consertar, em tempo:

- Porque não costumo ver muitos cabelos como o seu, sabe?

Continuava com cara de emburrada.

- Sei, sei...

- Meu – Falei – Agora é sério: preciso ir lá.

- O que você vai fazer?

- Pagar um troço ali no Tribunal e – Olhei o relógio – Faltam dez minutos pro banco fechar.

- Tá, vai lá! Ah, antes – Abriu os braços, abriu aquele sorriso desfibrilador e disse: - Posso te dar um abraço em nome das nossas crianças?

Eu não estava definitivamente me sentindo uma orquídea depois de ter descido com mais alguns rapazes meia tonelada de caixas por cinco andares. Senti vergonha.

Mas fui ao encontro daqueles braços que estavam abertos, pra mim, em nome das crianças deles; aqueles braços que me envolveriam num abraço que eu não conseguia me recordar do último, do que o precedeu.

Abraçamo-nos. Me vi apertado entre braços macios e perfumados. Me vi com o queixo no ombro de alguém que acabara de conhecer; com o nariz nos lustrosos e esvoaçantes e mais vermelhos e cheirosos cabelos de alguém que acabara de conhecer.

- Fala comigo quando voltar, tá? – Despediu-se a Menina das Crianças.

- Tá – Mas minha voz não saiu.

Dei as costas.

Segui meu caminho.

Alguns meses se passaram. O débito continua sendo feito na minha conta corrente. Creio ter ajudado alguma criança a evitar os sortilégios das cáries que eu – mesmo sendo adepto a três escovações diárias – ando sofrendo.

Nunca mais a vi – a não ser em sonhos.

A Menina das Crianças que acabara se tornando a Menina dos Meus Sonhos.

Guilherme Sakuma - To Sheila (Smashing Pumpkins Cover)

Escrito entre Abril e hoje (11/08/2011).

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 11/08/2011
Reeditado em 11/08/2011
Código do texto: T3154256
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