BRINCADEIRA DE CARNAVAL

Ainda fazia noite e uma névoa espessa pairava aborrecida sobre os telhados limosos e a terra empapada de orvalho, quando Ramiro Serênio entrou na padaria com seu imenso capote preto de couro de búfala, um gorro escuro metido no crânio e um par de luvas negras a lhe calçar os dedos, mas tão gastas e carcomidas, que se tinha a impressão de que ele as roubara de algum defunto. Um autêntico corvo. Nenhum dos presentes fez-lhe a graça de um olhar. Ramiro Serênio caminhou até uma mesa ao fundo do estabelecimento, abriu o jornal que trazia enfiado debaixo do braço e começou a ler as notícias policiais para passar o tempo. Estava adiantado.

Aos poucos, uma claridade ainda tímida e levemente azulada foi invadindo o interior da padaria, atravessando as vidraças embaçadas, ensopadas por gotículas d’água. Prenunciava-se uma manhã magnífica, daquelas filtradas nas florestas pubescentes dos primeiros tempos, a arrebentar de oxigênio e frescura. Dona Veneranda estranhou que o amanhecer não dera galos e gritou para o marido, que amassava o pão na sala contígua:

- Deus também fala pela voz dos galos. Esse silêncio desesperador é sinal de desaprovação. Nunca vi manhã pelada de galos aqui! Isso não é certo... não é certo...

O marido abriu o forno e um clarão coruscante flamejou vermelho em sua face rosada. Meteu lá dentro os últimos pães que ainda não tinham sido assados e voltou para junto de sua esposa, que insistiu:

- Você está me escutando, Ascânio, isso não é certo!

O velho Ascânio nada respondeu, apenas balançou levemente a cabeça, deitando um olhar de urtiga sobre a mulher, como se dissesse “agora é tarde, tarde demais para arrependimentos”.

A cada minuto que passava, o coração de dona Veneranda batia mais descontrolado e por duas vezes ela tomara água com açúcar, tentando aplacar inutilmente os nervos agitados. Arrependera-se do que dissera por brincadeira na véspera e agora o remorso lhe mortificava a consciência. Como estava muito aflita e não conseguia parar quieta, dona Veneranda atravessou todo o salão da padaria para espiar pela janela. Ao passar diante da mesa onde Ramiro Serênio continuava a ler seu jornal, a mulher quis interromper seu passo para lhe dirigir a palavra, mas não encontrou coragem e seguiu em frente. O rapaz percebeu a intenção da velha e, apenas com um gesto sutil, como se lhe dissesse “está aqui”, ele indicou que algo havia no bolso do seu paletó. Agora é tarde demais para arrependimentos, guinchavam dentro de seu cérebro aquelas palavras do marido, feito ratazanas histéricas. Com uma das mangas da camisa, dona Veneranda esfregou a vidraça embaçada e seus olhos ficaram a caçar vultos de fantasmas ao longo da estrada barrenta. O frio era tão intenso lá fora, que até as árvores pareciam encolhidas, aconchegadas uma nas outras. Dias assim eram bons para se ficar no quentinho das cobertas, tomando chocolate quente, bestando... Alguém pediu mais café, tirando dona Veneranda do seu posto de observação. Ela tomou nas mãos magras e rabiscadas de veias roxas o bule fumegante de leite e verteu um pouco do seu conteúdo sobre uma xícara de porcelana branca. O aroma do leite encorpado cresceu rico de saudades nas narinas de dona Veneranda e ela se lembrou dos tempos em que, ainda muito menina, ajudava sua mãe a mexer o doce de leite no tacho. Antigas recordações que não desbotavam nunca. Depois de acrescentar café, ela indagou:

- Açúcar?

- Obrigado.

Eram quase nove horas da manhã, quando a porta da padaria se abriu e um vento cortante como caco de vidro varreu tudo que havia lá dentro, congelando até as palavras cálidas que um casal de namorados ia trocando entre carícias sutis e beijinhos apaixonados. Ramiro Serênio puxou para cima a gola de seu capote preto e em seguida esfregou as mãos sobre o rosto, achando estranho todo aquele frio naquela época do ano, de tal forma que não pôde deixar de ver naquilo um presságio funesto. Ao olhar para a direção da porta, notou que era Fernandelle quem acabara de entrar e sorriu satisfeito por ela ter chegado antes de Herculano. Nunca ficara a sós com aquela moça que fazia seu coração dar cambalhotas no peito e talvez ali estivesse uma oportunidade extraordinária dele se mostrar mais interessante e atraente do que na véspera.

Fernandelle não ia além dos dezenove anos de idade, quadra em que a fortuna não costuma ser muito severa ao distribuir o feitiço da formosura entre as mulheres. Até mesmo as menos belas têm também a sua graça e o seu encanto num olhar, num sorriso, na maneira doce de caminhar. Pois a fortuna havia sido pródiga demais com Fernandelle. Pensai em Helena de Tróia, pensai na Vênus de Urbino ou em qualquer uma das mil esposas de Salomão. Ainda assim, tereis apenas uma idéia frouxa e pálida da beleza de Fernandelle. Nunca houve olhos mais azuis e olhar mais atrevido que os dela. Ao contemplá-los, era como se admirássemos extasiados pela primeira vez uma cachoeira rebentando em gorjeios num dia claro de sol. Seus cabelos, formados por longos cachos loiros como rosas amarelas, cobriam os ombros perfeitos, esparramando-se pelas costas de uma maneira deliciosamente indisciplinada. Não era alta e o seu corpo, esmeradamente cinzelado pelo diabo, sempre exalava um perfume adolescente de tutti-fruti. Todavia, a natureza impetuosa que lhe transbordava dos poros representava a nota mais peculiar de Fernandelle. Era como se a sua alma não coubesse naquele corpo miúdo de potra fogosa, arrebatada. Costumava agir impulsionada pelas paixões do momento, sem maior reflexão, com gestos amplos e escandalosos, como se o mundo estivesse para acabar no minuto seguinte. Amava tudo de um modo grandioso, hiperbólico, épico. No mais, dominava-lhe uma adoração mórbida pelo agora, pelo presente, pelo imediato e jamais fazia planos para um futuro muito distante, que odiava com furor, pois o sabia ladrão e devorador implacável de toda juventude. Fernandelle nascera para ser jovem.

A moça caminhou com seu andar felino até onde Ramiro se encontrava e, antes de sentar-se à mesa, cumprimentou-lhe com um inesperado beijo na boca. Um sabor de maçã verde aninhou-se deliciosamente sobre sua língua e ele ficou pensando qual seria na verdade a relação que unia Fernandelle a Herculano. Apesar deles estarem sempre agarrados, namorados não eram, pois nenhum dos dois desejava compromisso mais sério e ambos saltavam de uma relação a outra como um passarinho pula exultante no galho da mangueira. Ramiro Serênio devorou por uns instantes aquele rostinho delicado, que Michelângelo algum jamais poderia igualar em sua infinita genialidade. Tentou dizer qualquer coisa, mas as idéias lhe surgiam de muletas, aos tropeções, e ele lutava o quanto podia para controlar o fogo dos instintos, pois sua vontade era chutar mesa e cadeiras para longe e possuí-la ali mesmo, no chão gelado da padaria. Foi Fernandelle quem quebrou o silêncio:

- Então, trouxe o que combinamos?

- Está aqui - respondeu, colocando a mão tremendo sobre o bolso.

- Vai ser engraçado...

Ramiro disse nada. Era incrível, mas somente agora parecia ter-se dado conta da atrocidade que estavam para cometer. Haveria no mundo mulher mais maligna, mais perversa, mais ordinária do que ela? Quis levantar-se dali e acabar de uma vez por todas com aquela brincadeira hedionda e macabra, dizer-lhe nomes sujos, fugir para sempre dos tentáculos nocivos e de toda podridão contagiosa que a alma de Fernandelle exalava. Contudo, os seus olhos hipnóticos de aurora edênica deitavam teias de aranhas indestrutíveis sobre o pobre Ramiro, impedindo que ele partisse. Diabos! A beleza é a força mais poderosa que rege o universo! Bastava um capricho, um pedido daquela para mulher tirânica para que ele, escravo desprezível, transformasse em pó o mundo inteiro!

- Posso ver?

Um pouco contrariado, Ramiro retirou do bolso uma pequenina garrafa de licor e a colocou sobre a mesa. Fernandelle mordeu o cantinho do seu lábio inferior, como se sentisse um imenso prazer naquilo tudo. Lá fora, alguns foliões bêbados passaram cantando desafinado antigas marchinhas, lembrando que ainda era carnaval e uma manhã esplêndida folgava pelos campos de alecrins. Ramiro tomou em suas mãos a garrafa de licor e a meteu novamente na proteção do bolso. Nesse momento, Herculano entrou na padaria.

Era um homem rude, aparentando trinta anos, com muito pêlo no corpo e queixada ampla de cavalgadura. Penteava invariavelmente seu cabelo de piche para trás, untando-o com pasta de gomalina, cujo perfume enjoado servia para manter longe as moscas, uma vez que não costumava se banhar amiúde. Tinha a voz possante do tigre urrando numa caverna, que intimidava e fazia com que todos concordassem com ele. Além do mais, era alto e forte feito uma jaqueira, um autêntico homem de neandertal nascido fora do tempo.

Ao vê-lo, Fernandelle levantou-se e correu para abraçá-lo, pulando sobre seu corpo a fim de lhe beijar longamente a boca, como se não o visse há muito. Não se importava com nada e pouco se lhe dava o que os outros pensavam. Herculano arrastou uma cadeira para junto da mesa e, antes mesmo de se sentar, berrou:

- Dandinha, quero cerveja!

Dona Veneranda caminhou até o refrigerador e retirou dele uma garrafa coberta por uma finíssima camada de gelo. Antes de servir, porém, exclamou contrariada:

- Não gosto que outros me chamem assim!

Dandinha era o apelido carinhoso com que o marido costumava chamar dona Veneranda. Apenas ele tinha esse direito e qualquer outro que pronunciasse tal nome sempre parecia estar procedendo em tom de galhofa a seus ouvidos sensíveis. Herculano olhou-a da cabeça aos pés e, em seguida, bradou:

- Que isso, Dandinha? Acordou de mau humor hoje? Seu velho não compareceu? É festa, mulher! Vamos beber e nos divertir! Não se esqueça da nossa brincadeira de carnaval, eh, eh, eh... daqui a pouco tudo estará resolvido para você...

A mulher retornou para trás do balcão agoniada, sem saber o que fazer. Se fosse à polícia, era capaz daqueles animais matarem a ela e a seu marido também. Se nada fizesse, estaria participando daquela barbaridade atroz e, mesmo sabendo que ninguém nunca seria punido na terra pelos tribunais dos homens, a sua consciência a martirizaria pelo resto da vida. E ainda havia o tribunal de Deus... Um chafariz começou a jorrar lágrimas dentro de seus olhos afogados e dona Veneranda amaldiçoava o funesto minuto em que ela fora abrir a boca para se meter onde não devia. Na noite anterior, reunidos ao redor da mesma mesa de agora, encontravam-se Ramiro Serênio, Fernandelle e Herculano. A padaria estava vazia, pois todos moradores da vila tinham ido ver o desfile dos carros alegóricos ou estavam pelos bailes. Os três já haviam bebido muita cerveja para brincar o carnaval a sua maneira e as idéias começavam a claudicar em virtude de todo álcool que lhes entupia o cérebro. Fernandelle ria alto de qualquer coisa estúpida que os companheiros dissessem e aos poucos iam seduzindo-na a fazer um strep-tease particular. Para provocá-la, Herculano dizia que ela tinha os peitos mais lindos do mundo e endossava sua opinião citando um sem-número de mulheres que se deitara com ele:

- Certa vez, conheci uma cigana argentina formidável, mas que não valia um dos teus dedos mindinhos...

Também já muito excitado, Ramiro Serênio ia dizendo qualquer bobagem que lhe vinha à cabeça:

- Se você abrir a blusa, sou capaz de fazer uma loucura, faço o que me pedir!

Era o que os dois desejavam escutar. Como se já tivessem ensaiado antes, Herculano e Fernandelle disseram a um só tempo:

- Qualquer coisa?

- Faço o que quiser, docinho.

Então a menina piscou para Herculano com seus olhos de cachoeira como se dissesse “conseguimos” e começou a desabotoar lentamente a blusa. Um a um, os botões iam sendo transpostos, delicadamente retirados das casas por aqueles dedinhos delgados e os seios brancos e frescos de Fernandelle começaram a querer pular para fora da blusa. A boca de Ramiro aguava. Quando ela terminou de abrir o último botão, um par de magníficas tetas generosas desabrochou maravilhosamente diante de seu olhar ereto. Por pouco o rapaz não caiu da cadeira e, como se encontrava bestificado, somente conseguiu pronunciar duas palavras:

- Deus existe...

Fernandelle fechou novamente a blusa, certa de que conseguira o seu intento. Ali estava Herculano, com sua voz de tigre urrando na caverna, para garantir que o outro não voltaria atrás em sua promessa. Sem esperar mais nada, como se o álcool já não mais lhe perturbasse as idéias, ela lançou a pergunta de chofre:

- Você já matou alguém?

Ramiro Serênio gelou. Aonde ela pretendia chegar com aquilo tudo? Começava a achar que havia caído numa cilada.

- É claro que não. Por que a pergunta?

- Por nada... apenas curiosidade de moça. Mas você nunca teve vontade?

A sua vontade era ir embora dali o quanto antes. Não gostava nem um pouco do rumo que a conversa estava tomando, mas receava que a sua partida os ofendesse, principalmente depois de tudo que acontecera. Herculano o encarava fixamente, tendo a perversidade estampada em sua face, mas Ramiro Serênio não desviava o olhar de Fernandelle.

- Tenho vontade de matá-la, disse brincando.

A menina sorriu lindamente e continuou:

- Todo mundo já teve vontade de matar alguém, faz parte da natureza humana. Só não o fazem por medo de serem punidos. Não é mesmo, Herculano? Agora, se você tivesse oportunidade de matar alguém, sabendo que nunca descobririam nada, que não haveria punição alguma, o que você faria? Levaria a cabo o assassinato ou se acovardaria? Por exemplo, tirar a vida de uma pessoa que lhe é totalmente desconhecida, que não lhe fez nenhum mal. Apenas pelo prazer de matar...

- Nunca pensei a respeito. Por que mataria alguém que nada me fez?

- Exatamente por isso. Para descobrir como é, por saber que não haverá castigo, para sentir o prazer sutil que corre pelas veias dos homicidas. Se não há testemunha ou punição, é como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse morte alguma. A vida segue em frente e o tempo tudo enterra com sua pá democrática de coveiro experiente.

E como se uma harpia mexesse um caldeirão com um pedaço de pau dentro de seus olhos fumegantes, Fernandelle fuzilou:

- Eu quero que você mate alguém para mim!

Um silêncio de pedra inundou a padaria. Já não se ouviam os grilos cantando lá fora, já não se ouviam ao longe as canções alegres de antigos carnavais, já não se ouvia nenhum folião arrastando sua felicidade ébria pela rua. Parecia que a terra toda havia se transformado num gigantesco cemitério, habitado apenas por notívagas sombras silenciosas e cadáveres de árvores ligando o mundo dos vivos ao mundo dos mortos. Como ninguém dizia nada, Herculano aproveitou para pedir mais cerveja, berrando para a velha:

- Dandinha, os copos estão vazios!

Dona Veneranda tirou do refrigerador a garrafa mais gelada que seus dedos encontraram e veio servi-la aos três. Enquanto ia despejando a bebida nos copos, a espuma perfumada crescendo até as bordas, ela não podia deixar de ouvir o que eles continuavam discutindo. Fernandelle insistia:

- Você me deu sua palavra e o Herculano está de prova. Agora quero que você mate alguém para mim, qualquer pessoa que desejar, não tenho preferência especial por ninguém.

- Não seja tola! Não farei isso de jeito nenhum. Peça-me qualquer outra coisa, que cumpro minha promessa no mesmo instante.

Herculano tomou o seu copo já cheio e o despejou dentro da garganta de uma só vez. Em seguida, batendo-o com violência sobre a mesa, esbravejou:

- Se não obedecer a moça, meu chapa, garanto que arranco seus olhos e sua língua pelo rabo.

- Calma, Herculano, pediu Fernandelle. Vamos resolver a coisa como pessoas civilizadas. Se você não quiser matar, não mate. Tudo bem. Mas ao menos prepare o veneno. Você é boticário, arranja isso facilmente. Escolha um que não apresente cheiro e o coloque dentro de uma garrafa de licor. Não lhe parece razoável? Nós entregamos a bebida para qualquer pessoa que desejarmos e ela vai morrer longe daqui. Ótimo, não? Vejo que você gostou da idéia. Sei que Herculano há de concordar comigo...

- Você é louca!

- A vida só é emocionante quando cometemos algumas loucuras...

E fitando-o apaixonadamente com aqueles olhos hipnóticos, aos quais nada era possível recusar, ela aproximou seus lábios dele e, quase lhe beijando as carnes abrasadas, sussurrou lascivamente:

- Te espero amanhã cedo com meu presente, menininho teimoso...

Dona Veneranda achou que tudo aquilo fosse brincadeira de carnaval, tão encharcados de álcool se encontravam os três e por isso não viu problema algum em dar sua opinião em tom de chacota:

- Por que vocês não matam esse mendigo que agora deu para dormir aqui na porta da padaria, deitado no capacho feito um cão vadio. Assim, vocês estariam prestando um favor para a gente.

- O quê, bradou Herculano com um sorriso encardido no rosto. A vovozinha é do mal...

Todos riram gostosamente da piada e dona Veneranda foi pegar uma velha vassoura para desfazer um ninho de marimbondos, que aparecera num caibro do telhado da padaria.

* * *

Já era hora do almoço, quando Fernandelle viu o mendigo através da janela e, com o coração exultante, avisou aos companheiros que ele finalmente havia chegado. Era estranho que o sujeito ali não se encontrasse naquela manhã como costumava fazer todos os dias. Talvez as noites de carnaval tivessem mudado os seus hábitos ou o frio intenso ou ainda, quem sabe, ele intuíra qualquer coisa e tivesse resolvido ganhar estrada. De qualquer forma, estava ali e já procurava se proteger da friagem com algumas folhas de jornal, quando a porta da padaria se abriu e a voz possante de Herculano bradou:

- Ei, amigo, venha se abrigar aqui dentro!

O mendigo o olhou desconfiado, pois não estava acostumado a cortesias. Ia recusar o convite, que Deus o abençoasse, quando Herculano fez uma segunda tentativa:

- Está muito frio aqui fora. Venha beber algo para esticar as canelas, quero dizer, esquentar as canelas...

“Ainda há gente boa no mundo”, pensou o mendigo, que se chamava Vitalino. Não foi preciso insistir mais. Ele levantou-se meio desconjuntado, dobrou cuidadosamente seus cobertores de papel jornal e seguiu Herculano até a mesa onde estavam sentados.

Vitalino não era velho, estava gasto por causa do destino sádico que se acostumara a maltratá-lo. Tinha em torno de quarenta anos, era baixo, gorducho e não possuía pescoço, de maneira que parecia uma batata atarracada. Vestia invariavelmente a mesma roupa tanto nos dias de semana, quanto nos domingos e dias santos, composta por uma calça de brim azul ensebadíssima, uma camisa xadrez de manga comprida e um casaco de couro marrom, furado em pelo menos três ou quatro lugares diferentes. Orgulhava-se muito de sua barba barbaramente agreste, a qual nunca rapara desde a adolescência, e que lhe emprestava uma aparência de líder messiânico desvairado. Qualquer pessoa que se dignasse a conversar com ele, porém, logo perceberia que Vitalino era dotado de grande agudeza de espírito, fino poder de observação e mais astucioso do que uma raposa velha.

Convidado para integrar a mesa, o mendigo não fez cerimônia alguma e sentou-se bem ao lado de Fernandelle. De cara, a menina notou-lhe o cheiro de cavalo morto e arrependeu-se por não terem escolhido um futuro defunto mais cheiroso. Depois de ser apresentado a todos e muito agradecer a gentileza “daqueles moços de coração puro”, que se “preocupavam com a sorte dos infelizes como ele”, Vitalino perguntou a Herculano:

- Mas você me disse que tinha algo para esquentar os pés?

- Ah... que falta de educação a minha! Nós aqui bebendo e você sem um copo! Dandinha... ô Dandinha... traga um copo para o nosso amigo aqui!

De propósito, dona Veridiana apareceu com um copo já cheio de cerveja, o que irritou Fernandelle:

- Quem mandou a senhora trazer mais cerveja? Pedimos apenas um copo, vovozinha! Nós mesmos gostaríamos de servir a bebida ao nosso novo amigo.

A velha voltou calada para trás do balcão. Sabia que o veneno estava na garrafa de licor e imaginava que, agindo dessa forma, estaria ganhando tempo para pensar numa solução melhor. Vitalino tomou em suas mãos ásperas o copo espumando cerveja pelas bordas e bebeu alguns goles com imenso prazer. Em seguida, tornando-o à mesa, disse:

- Amigos, sem querer abusar da boa vontade de vocês, mas meu estômago é muito delicado e não posso acompanhá-los na bebida com ele roncando vazio dessa forma. Seria ótimo se tivesse também algo para eu comer.

Herculano olhou torto para Fernandelle, achando que aquele pedido era um pouco de abuso do convidado. Afinal de contas, já o haviam tirado do frio e lhe dado boa cerveja de graça. Agora queria comida? Ramiro Serênio riu ao ver que os companheiros não sabiam que atitude tomar. Então chamou dona Veneranda e pediu que ela fritasse alguns ovos com salsichas.

Quando a mulher retornou trazendo as gordas salsichas fumegando saborosas entre os ovos fritos, Vitalino já havia enchido seu copo de cerveja novamente e dessa vez nem teve a polidez de pedir permissão. Cortou as salsichas em fatias gordas e, ao ingeri-las, ia exclamando satisfeito:

- Ah!...

Ao cabo de poucos minutos, ele já havia devorado tudo, inclusive um pedaço de pão que se encontrava na mesa vizinha. Herculano tentava disfarçar a sua irritação, mostrando dentes amigáveis e sorridentes. Já estava pronto para oferecer a Vitalino um copo de licor, quando este colocou a mão sobre uma das coxas de Fernandelle e disse apontando para a direção do balcão, onde o velho Ascânio apareceu segurando uma travessa:

- Que coxas deliciosas!

De fato, o marido de dona Veneranda acabara de retirar do forno um frango espetacular, com enormes coxas rechonchudas a trescalar um aroma delicioso e suculento.

- Sintam como essa galinha está perfumada. Vamos comê-la também? Sugeriu Vitalino, que babava incontinente sobre a barbada tesa e ainda não havia removido sua mão da perna de Fernandelle. Sem esperar pela resposta dos outros - e como ninguém se manifestou para defendê-la daquela garra asquerosa - a menina deu um safanão na pata do abusado mendigo e retrucou com espinhos na voz:

- Ninguém vai comer galinha alguma! Ponha-se no seu lugar, seu mendigo nojento!

Os olhos de Vitalino congelaram. Podia ser pobre, muito pobre mesmo, mas tinha a alma orgulhosa e vergonha na cara. Imediatamente levantou-se da cadeira e com muita educação falou:

- Olha, moça, desculpe-me se fui inconveniente. A minha intenção não era ofender ninguém, muito menos vocês, que me trataram como um velho amigo. Reconheço o meu lugar e por isso não vou mais incomodá-los. Adeus.

- Não, bradou Herculano, espere! Não leve a sério essas palavras rudes de Fernandelle. Ela anda nervosa... coisas de mulher, você entende, não? Escute... sente-se novamente que eu lhe pago o frango. Isso... brindemos à amizade!

E dirigindo-se para Fernandelle:

- E você peça desculpas ao nosso amigo!

- ...

- Peça desculpas, Fernandelle! E dê a ele aquele nosso presentinho...

- Que presentinho?

- Aquele nosso presentinho...

- Ah... então desculpa, viu!

E tomando em suas mãos a garrafa de licor que Ramiro Serênio lhe passou disfarçadamente por debaixo da mesa, ela exclamou:

- Toma! Não vá beber tudo de uma vez, hein?

Vitalino pegou a garrafa e por alguns instantes ele ficou admirando o seu conteúdo verde, como se estivesse hipnotizado. Herculano pediu o frango, que logo foi servido por dona Veneranda. Com mãos esfomeadas, o mendigo passou a destrinchar a ave sofregamente, lambendo de vez em quando a gordura que ia escorrendo pelos dedos rombudos e pingando na mesa. Em seguida, após ter devorado uma das asas, ele enxugou as mãos na toalha e abriu a garrafa de licor, que estava fechada apenas com uma rolha. Fernandelle até parou de explicar qualquer coisa a Herculano, pois não queria perder nada, nenhuma reação do mendigo. Era agora! Vitalino derramou o licor de menta até encher metade do copo e indagou:

- Alguém me acompanha?

Ninguém quis e todos ficaram olhando para o mendigo, esperando que ele desse um primeiro gole na bebida. Porém, nada dele beber! Parecia que o sujeito havia se esquecido completamente do licor e voltara a atacar o frango com energia redobrada, deixando-o reduzido a ruínas em poucos minutos. Quando ele acabou, Herculano já muito impaciente disse:

- Não vá se esquecer do licor!

- Ah, o licor, repetiu Vitalino. Que pena! Gostaria tanto de poder apreciá-lo, mas creio que não me vai ser possível. Quando bebo licor sem ter algum tipo de açúcar no estômago, fico com gazes. É uma doença que tenho, mas quem sabe depois da sobremesa...

As retinas de Herculano aumentavam e diminuíam de tamanho como se fossem estourar de tanta raiva, mas ele procurava se controlar o quanto podia. Espremendo sua cólera entre as frinchas dos dentes, reguingou:

- Mas que diabos de doença é essa a respeito da qual eu nunca ouvi falar?

- Não ouviu, porque é rara, só dá em mendigo, explicou Vitalino.

- Ora, não seja por isso, acudiu Fernandelle.

E gritando para dona Veneranda:

- Dandinha, me traga aquele pedaço de goiabada!

A mulher trouxe o doce numa bandeja e o colocou diante de Vitalino, que ainda teve a cara-de-pau de perguntar?

- Não tem queijo?

- Não tem, não senhor, esbravejou Herculano. Daqui a pouco você vai querer também vinho francês e chocolates suíços!

Dona Veneranda voltou para trás do balcão com um sorriso despudorado nos olhos. O mendigo estava dobrando os três de jeito e ela não se admiraria se o cujo acabasse convencendo algum deles a beber um pouco do licor. Ao terminar a sobremesa, Vitalino deu um arroto satisfeito e disse segurando a barriga estufada:

- Gente, eu não estou me sentindo bem...

- Mas como você não está se sentindo bem, se nem bebeu ainda o licor? exclamou Fernandelle, já quase chorando de ódio.

- Preciso respirar ar puro, com licença.

Então o mendigo levantou-se, meteu a garrafa de licor debaixo do braço e despediu-se de todos:

- Au revoir!

Nenhum dos três fez a gentileza de lhe responder, talvez porque foram pegos de surpresa e estavam muito ocupados recolocando no lugar os próprios queixos que tinham desabado sobre a mesa. Por fim, meteram-se a praguejar:

- Maldito mendigo, disse Herculano.

- Mendigo maldito, redisse Fernandelle.

- Sujeitinho danado, completou Ramiro.

- O que me conforta - continuou Fernandelle - é a certeza de que ele beberá o licor quando tiver sede. Não importa onde esse mendigo aproveitador vai estar, a morte há de encontrá-lo para lhe arrancar a alma daquele corpo esmolambado com suas tenazes de fogo. Por que essas caras? Eia, sorriam! Nós conseguimos, vencemos!

Mas enquanto brindavam felizes, fazendo gritar os copos cheios de cerveja, o mendigo apareceu lá fora, diante da janela da padaria e acenou-lhes um adeus agradecido. Em seguida, atravessou a rua e, antes de sumir por completo da vidraça, os três ainda puderam ver Vitalino tirando a rolha da garrafa. Ia finalmente provar aquela doce bebida da morte, quando um grupo de estudantes bêbados em alegre surriada passou dentro de um carro e, para brincar o carnaval, lançaram um balde de água suja sobre o mendigo. O susto foi tamanho que Vitalino acabou derrubando a garrafa no chão, partindo-a em centenas de caquinhos brilhantes. Cheio de tristeza, exclamou:

- Poxa vida, era muita sorte para ser verdade!

E foi tirar uma soneca debaixo de um pé de abacates.

José Martino
Enviado por José Martino em 10/12/2006
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