O fim de festa de Sofia
Quatro da manhã. Ela sentou no sofá, juntou os cabelos com uma destreza que só o hábito dá e graciosamente os prendeu. Duas gotas de esmeralda sobressaíram em seu rosto. Graça e leveza de jóia. Tirou os sapatos. Correria essa, a do dia-a-dia em que as pessoas se reúnem cada vez menos, mas Sofia sempre dá um jeito de juntar todo mundo numa boa festa. Ótima anfitriã, ficou de olho para que tudo estivesse a contento, porém aquele sentimento volta e meia emergia, estragando o cansaço, até prazeroso. Tudo correu tão bem !
Suspirou fundo - Nem vou pensar, não mesmo...! Que estupidez! - disse em voz alta.
... e o antigo globo no chão com um pesado aro de ferro cruzou com seu olhar. Bela relíquia em madeira, coberta por um escuro verniz. Sua vida em travessia fez uma rota breve - algumas vezes cruzeiro, em outras navio de carga ou somente veleiro conversando com o vento que lhe soprava os segredos do imprescindível prumo... prumo, “boa palavra essa !” e o pensamento voltou num ímpeto inconfesso. Difícil altivez ao pensar na hora em que esbarrou na mais recente obscuridade, equívoco eclipsado na noite. Ela refaz o percurso – Num dos quartos, porta fechada, uma breve discussão. Palavras duras. Algumas, nem a pira do tempo crema. Seu olhar então, dispara uma flecha bem no alvo da discórdia, embora já nem saiba se existe um depois, abaixa a cabeça; não quer ouvir mais nada, mas ele continua. Aperta seu braço na tentativa de validar o que já não cura, como remédio vencido. Ela o afasta. Abre a porta e sai.
Desconforto de lembrança. Sofia afugenta o pensamento.
“O Sociólogo, acompanhado de Marta...humm, como se chama mesmo !? Ah sim, Gil... interessante, mas depois de um tempo, que chatice ! Alguns bocejavam, outros saíram de fininho. Quem quer saber da teoria do sistemas dinâmicos e globalização depois de tantos drinques ? "
Jean Luc, com seu habitual humor francês, dá uma bela bufada que, por sinal, é vírgula no elegante idioma e sussurra o velho ditado no ouvido de Sofia: “Ma chérie, la culture est comme le beurre, moins tu en a, plus tu l’étale” (Minha querida, a cultura é como manteiga, quanto menos você tem, mais você estica). Sofia sorri e disfarçadamente, o afasta do grupo puxando-o pela mão.
- Essa paixão provinciana pela própria intelectualidade é patética ! - desabafa irritado.
- Que tal dar um pulinho lá fora ? Parece que a animadíssima Débora pulou na piscina !
Jean Luc se retira não muito resignado. Sofia ainda ouve no caminho o murmúrio de um puta que "parrriu" ! gutural e francofônico...mas, nada como um belo corpo molhado na transparência de uma blusa para abrandar seus ânimos. "Funcionou como um mantra !" conclui Sofia.
Agora ela lembra do velho amigo Inácio. Logo depois da infortunada cena, passando pelo corredor, se deparou com ele. Sofia tentou se recompor.
- Minha linda Sofia. A "cesar salad" ficou supimpa! a melhor que já provei. Vou pegar a receita com a Neuci na cozinha. Tem uma caneta ?
- Na sala, perto do telefone – diz Sofia.
- Você viu o cara que chegou à pouco ? - pergunta Inácio.
- Não, estava no quarto. Porque ?
- Um tal de Jeferson. É melhor ficar de olho! Caroline o conheceu no
super mercado. Sabe como é: carinha de gringa, não fala nada de
português, o malandro se encostou ! Boa pinta, muito gentil, carregou as
compras. A Carol achou ele um amor e o convidou para a festa. O sujeito é pilantra, Sofia!
- Ah, Meu Deus! Eu falei para a Letícia não desgrudar da Carol.
- Pois é – diz Inácio - O cara ficou trancado no banheiro uns cinco minutos e saiu com uma cara esquisita, cara de Collor ! Olhou para mim, deu uma fungada e disse: ...e aí mano, beleza ?
- Não me assuste, Inácio ! – diz Sofia.
- Fique tranquila ! Apenas avise a Caroline. Se ele criar problemas pra sair, eu chamo o “armário” do Betão. Deixa que o Betão resolve !
E lá se vai Inácio que esbarra com tudo em Cláudia que procura o banheiro. Passa como um tufão, rumo às anotações gastronômicas.
- Esse seu amigo hein ! Vou te contar ! Você viu? Nem um "desculpe”! Claudinha arqueia uma das sobrancelhas. Sua marca registrada de indignação.
- Deixa pra lá Claudia. O Inácio é uma ótima pessoa. Atravessou um tempo difícil. Parece que agora está bem. Anda apaixonado pela culinária.
- Desastrado desse jeito ! Vai ser uma beleza na cozinha !
- A sandália tá linda, viu ! Muito feminina - diz Sofia, já mudando de assunto.
- Como ? - pergunta Claudinha. Seus olhos se espicham no fundo do corredor ainda no encalço de Inácio.
- As sandálias, Cláudia. Adorei essas pedrinhas.
- Ah sim ! Me dei de presente pra festa – fala como garota com brinquedo novo.
”Claudinha e Inácio, mas quem diria!” pensa Sofia.
Algumas horas depois, alguns drinques a mais e os dois estariam em sintonia perfeita, sem o menor ruído. Ele girando o copo fazendo o gelo derreter mais rápido. Ela já desarmada. Sofia clicou em sua memória um par de pernas cruzadas, as pedrinhas reluzindo como os olhos de Claudia e um sorriso em Inácio que ela não via há tempos.... ah, os pensamentos sedutores que cortamos vorazmente com críticas silenciosas levantando muros contra a obscenidade do desejo até chegar à admissão: Sinto-me atraída. A atração é sempre mais sutil.
Copos e garrafas por todo lado "...Nossa, a sala vazia parece bem maior ! Ou será o vinho? mas, que bagunça !... Ainda bem que a Carol estava entre amigos e o sujeito foi logo embora. Como diz Jean Luc : "Esse é o perigo do exotismo ! Quando não falamos a mesma língua, podemos vestir qualquer fantasia no objeto do desejo.” Risos, barulho de saltos, tin-tin, roçar de taças e volúpias, fragmentos de conversas, música. Ela ainda ouve a canção suave no ritmo do jazz "...the way you changed my life, they can’t take that away from me..." Cruzamento de memórias em dissonância.
Pequenos delitos maldosos, busca insaciada de si mesmo no outro, transgressões que apagam o fascínio e a cumplicidade num piscar de olhos. Frágil equilíbrio, o amoroso.
Descalça com os sapatos na mão, ela segue em direção ao quarto quando vê um copo no chão do carpete. A taça, inadequadamente fora de lugar, tombada no chão soa como uma Aristotélica falta de decoro sem nenhuma poesia.
Que judiação ! – diz Sofia.
Ela se abaixa para pega-lo. Bem de perto o examina, nem um trincado, intacto ! Um lindo cristal baccarat. Muito antigo, já faz parte de sua memória emocional. "Saúde, Sofia ! à viajem de veleiro!" ele diz sorrindo.
- Saúde ! - diz ela - Seu olhar, constelado no dele, tem um brilho intenso. O melhor dos mundos.
Como esquecer aquela viajem ! Viu até dois golfinhos no trajeto entre Angra e Ilha Grande. Tudo tão perfeito ! ....e as imagens desaparecem como um barco na linha do horizonte entre o sonho e a rotina.
Pequenas percepções como o ruído do choque de duas gotas de água que podem evocar um oceano. Magia do devaneio que insurge do inconsciente. É mesmo a memória que sonha, a imaginação lembra.
“Acho que o vinho nos torna mais emotivos mesmo. Poxa ! Que viajem ! ... iki..." e o soluço acusador se instaura. Ela observa a taça com a magnificência de um cálice cerimonial - O protagonista de um fim de festa.
Há um bom tempo, o ilustre representante já não faz jogo com nada. Em meio a outros tão diferentes se desprendeu das ocasiões especiais. Circulando com garbo e simplicidade serviu às mais variadas celebrações, enaltecendo tanto um vinho simples de mesa como um reserva especial. Para o deleite de homens e mulheres acolheu solenemente tanto o gosto dos adamados como dos secos. Já não habita as cristaleiras protegido, mas os armários simples do dia-a-dia, sempre com sua presença discreta, mas elegante. O fino bordeaux servido durante a noite fora derramado. Sofia vê nas reentrâncias do claro carpete, a mancha despudorada de um vermelho rubro, quase coagulado.
Já no quarto, ao fechar as cortinas, olhou o céu lá fora. Um cinza indefinido e sem graça como a desintensificação veloz de desejos, saía de mansinho para dar lugar ao brilho avermelhado da manhã. À meia-luz do abajur, ela desce o zíper do vestido que sedoso desliza pelos quadris e cai no chão. Por fim, completamente nu, seu corpo parece perder aquela gravidade humana que nunca desfruta do abandono de si mesmo. Em frente ao espelho, ele ganha uma languidez felina, quase mística. Apenas duas gotas de esmeralda o vestem. Duas gotas que lembram a cor de uma baía calma ao entardecer. A música que pairava no ar, reluz cravada em sua memória e por uns segundos, o verdadeiro sentido de algo pleno e compartilhado se desprendeu límpido e claramente como num decantador que faz o velho e bom vinho respirar.
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* Meu agradecimento ao querido amigo Kiko Canepa, artista plástico e cenógrafo que ilustrou esse conto.
* Feito ao som da bela canção – “ They can’t take that away from me." http://br.youtube.com/watch?v=CQy7FtUPeec