Coisas de Oswald
Semana passada, ontem para ser exata, tive uma conversa com Oswald.
Nos encontramos por acaso numa cafeteria de mesas redondas e toalhas brancas rendadas - veja só, ainda se usa renda -, cadeiras almofadadas e xícaras de porcelana e talheres de prata e bolos de sabores muito bons.
Entrei como se me fosse costume, queria que fosse, e sentei numa das mesas e foi inevitável passar a mão por sobre a toalha branca – as rendas finas. - Pedi o chá da casa e uma fatia de bolo (daqueles que vem com recheio de creme e cobertura) ao garçom muito bem vestido por sinal, com um paletó branco, calças impecavelmente pretas e vincadas – sempre achei difícil fazer vinco, vincos sempre foram mais fáceis – além da gravatinha borboleta presa ao pescoço, logo imaginei mariposa, porque é assim: não gosto de coisas estáticas. E ainda pensava na mariposa pelas costas do garçom quando vi Oswald entrando carregado de jornais e outros papéis. Não estava carrancudo, mas parecia preocupado, alguém esperava uma resposta, com certeza. Vi quando ia jogar a papelada sobre uma das mesas, mas parou e olhou para todos os lados e deu de encontro comigo – quase um Almodóvar: olhos nos olhos quero ver o que você faz -. Foi ali que sorriu e veio, todo faceiro e sem convites, largando papéis nas cadeiras e sobre a minha mesa (escolhida por mim: minha, que me serve, que me é ...) e sentou à minha frente puxando a cadeira até encostar a pança na mesa. A toalha enrugou (a minha toalha branca de renda sobre a minha mesa). Pensei em esticá-la, mas o possível toque na barriga de Oswald poderia causar um constrangimento irreparável. Não à ele, lógico, mas a mim.
Não que não goste de Oswald, até simpatizo bastante com ele, embora já lhe tenha dito que suas palavras por vezes não me tocam. Ele ri achando que brinco. Não brinco.
Sorrimos essas coisas de há quanto tempo e o que acontece e como vão seus pais e amigos e a cotação da bolsa e preço dos vinhos.
Se me lembro bem era minha vez de falar, mas Oswald – e é isso que também não gosto nele – começou a tagarelar com aquela voz de quem sabe de tudo e o pior, de quem não deixa virgula sequer para o interlocutor (no caso, eu) respirar. Não gosto de virgulas, é certo, e ele parecia fazer de propósito só para truncar as frases na minha garganta. O chá estava quente, mas tive de dar dois grandes goles para fazer palavras e todas as reticências descerem, sem soluço. Quase engasgo com um ponto e vírgula. Fosse apenas ponto desceria manso, mas a vírgula...
Oswald, então, em seu discurso entre goles de chá e nacos de bolo, que nem sei como não escapavam de sua boca entre uma interjeição e outra, dizia que:
- É preciso escrever para o povo, criando, assim, no proletariado uma consciência revolucionária contra o sistema político, cujos responsáveis devem ser os intelectuais. – eu ia dizer que já havia feito, até, com alguns bons resultados, mas não me ouviria - Os jornais serão os principais veículos da propaganda da ‘nova’ forma de pensar e criar
– e o dinheiro Oswald? E o dinheiro?
- Perceba que pela escrita pode-se fazer um trabalho de conscientização política
– sim, sim, você sempre diz isso, mas...
– Proponho a salvação do homem brasileiro, questionando a classe dominante
– heim?
- Mas quem é essa ELITE, em cujas mãos se monopolizam os 'meios de produção'. Imbecis de todas as espécies, moços que não têm um dedo de conhecimento de vida, coronéis inviris e de mulheres feias, vazias e recalcadas.
– oswald caia na real, isso já passou. Não, não passou, mas precisamos de algo mais. Já não basta porque...
– Não há tempo para discussão, tudo está dito. Vamos revolucionar
– péra lá, você ainda não me deixou falar. Eu tenho uma dúvi...
- Dum país que possui a maior reserva de ferro e o mais alto potencial hidráulico, fizeram um país de sobremesa. Café, açúcar, fumo, bananas. Que nos sobrem ao menos as bananas.
– você não está falando sério. Falta seriedade, Oswald. Falta seriedade?
– Antropofagia, já
– não seriam diretas?
- A posse contra a propriedade
– não me faça apologia aos sem-terra, sabe quanto isso me incomoda, uma vez que a terra com fins produtivos...
- Somos um Eldorado fracassado
– isso todos já sabem, Oswald, não se torne repetitivo, por favor. Precisamos mudar a situação, que agora não é só de terras e povo, é a solução para o ser humano, o indivíduo já não indivíduo, massa coletiva (pleonasmos à parte) de um ser construído para obedecer a ditames midiológicos e nunca satisfatórios. Eu penso que ...
- O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida vale ser vivida, mas de que o suicídio não vale a pena
- é isso que quero dizer.
Há algo mais filosófico, mais intrínseco ao brasileiro. Há de se perguntar, meu caro, não só quem é o Brasil, mas também e principalmente quem é o brasileiro. Que cultura traz, que ideologia, sonhos, vontades, objetivos e tantas outras coisas importantes. Quem é o brasileiro, Oswald? Quem é você? Quem sou eu? Quem somos nós? O indivíduo (e não falo do individualismo que este grita em qualquer canto, sozinho e mandão). A individuação de se saber diferente dos demais – nem melhor, nem pior, apenas brasileiros – a nossa música, ainda é nossa? Depois da bossa nova e da tropicália o que veio? A nossa língua ainda é nossa? Hardware, software, self-service, drive thru quais os sinônimos em tupi? E em guarani? Onde estão os índios? Os literatos, os literatos, mesmo, em que cadeiras estão sentados? Os pasquins, os folhetins, o bom e velho cordel está pendurado em qual varal? A nossa sétima arte anda a pequenos passos, mas anda. Anda certo ou vai se perder numa vala hollywoodiana qualquer de esquina? A plástica e toda sua arte, onde estão seus nomes e para o quê vem? O que querem nos mostrar agora ou nos fazer engolir?... O meu vizinho ou o motorista de ônibus ou a garçonete ou a prostituta da Rua Augusta ou o padre Marcelo ou o bispo Edir Macedo ou o Lula ou o Fernandinho Beirma-mar, quem são estes brasileiros? O que buscam? E a Rede Globo, o SBT, a Record e etc.? A TV Cultura é suficiente? A cultura brasileira onde está? O Saci, Iara, Mula-sem-cabeça e Curupira se perderam em alguma festa de halloween? Quem somos, Oswald? Brasileiros – brasileiro – quem é? Quem somos nós em Pindorama? E isso, meu caro, é o que corrói minhas idéias enquanto bebo o chá, que talvez devesse ser café ou uma boa garapa. São estas respostas que busco. É o que se deve levar em conta, hoje, porque estamos indo por uma Off-road que nos levará ao abismo do esquecimento. Estamos nos tornando xerox de outros indivíduos, escrevendo words no Word em fonte Times New Roman.
Oswald acaba de tomar sua xícara de chá. Limpa a boca na toalha (na minha toalha branca de renda) arruma os papéis. Sorri com pedaços de bolo entre os dentes. - Sei que está matutando -. Levanta. E vai.
Quis levantar também, indignada que estava, e quase grito: Oswald de Andrade, seu grande safado, volte já aqui e pague a sua conta.
Mas ele ia, carregando tantos papéis e algumas idéias (nossas), para discutir, agora, com outros bons amigos. E eu, enfim, pude ajeitar a toalha branca de renda.
Semana que vem nos encontraremos de novo, talvez com alguma resposta, talvez com uma boa idéia de começar...
Falas de Oswal = citações de Oswald de Andrade e comentários retirados do jornal: O Homem do Povo (março a abril de 1931). - criado por Oswald de Andrade e Pagu.